terça-feira, 31 de março de 2015

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

Por Augusto César Esteves



OS CONJURADOS

  
A notícia da tentativa insurreccional do Porto espalhou-se pelo país e chegou a Melgaço dois dias depois, trazida por um fidalgo galego. Na Vila vivia há muito uma senhora espanhola, fidalga e distinta. Era D. Maria Teresa Mosqueira de Lira, filha de D. Jacinto Mosqueira Tavares Soto Mayor e de sua esposa D. Teresa Antónia Lira e Pereira, da Casa de Paravedra, em São Cristóvão de Mourentão, Galiza; neta, pelo lado paterno, de Dom José Mosqueira e Trancoso e esposa D. Beatriz Tavares de Soto Mayor e, pelo materno, de Dom Bazílio Lira Pereira e esposa D. Joana Mosqueira e Baamonde, porque casara com Caetano José de Abreu Soares, em cujo acervo de bens se enumerava uma boa quinta junto do castelo de Lapela e morador na casa armoriada da rua Direita, ao lado da Matriz, herança do pai, que nela tinha mandado enquadrar as suas armas:
      
         «Um escudo esquartelado. No primeiro quartel as armas dos Soares, que são, em campo sanguinho um castelo de prata. No segundo as dos Nóboas, que são, escudo em mantel, no primeiro em campo sanguinho uma águia de ouro; no segundo em campo de prata um leão de púrpura, rompante, e no terceiro em campo de ouro um castelo sanguinho. No terceiro quartel as dos Abreu, que são, em campo sanguinho cinco asas de ouro postas em sautor. No quarto, as dos Novais, que são, em campo azul cinco novelos de prata, em sautor. / Elmo de prata, aberto, guarnecido de ouro. / Paquife dos metais, e cores das armas. / Timbre o dos Soares, que é o mesmo: castelo das armas, e por diferença uma brica de ouro, com um trifólio verde

          Aquela senhora tinha um irmão: António Maria Mosqueira de Lira. Patriota como aqueles que o são, cedo se arregimentou no número dos galegos lutadores pela independência da sua pátria. Quando soube terem as tropas espanholas do comando de Ballestá abandonado a ocupação de Portugal em som de guerra contra Napoleão, passou na velha barca da travessia do rio Minho no sítio de Mourentão e veio participar o feito ao seu cunhado. // Caetano José, então de sessenta e três anos, era das figuras mais representativas do meio melgacense. Como militar, tinha sido cadete no regimento de Valença e, como civil, nesta vila e seu termo fora várias vezes o vereador mais velho e Juiz pela ordenação, Almotacé ([1]), Monteiro-mor, Provedor da Santa Casa da Misericórdia, irmão da Confraria do Senhor erecta nesta vila e, desde 1799, cavaleiro da Ordem de Santiago da Espada. A capela da Senhora das Dores, no Convento de Nossa Senhora da Conceição, ostentava nas aduelas do arco as suas armas de nobreza. Era o seu padroeiro e tinha ali o seu jazigo.
          Custara a consegui-lo, porque demoradas foram as conversações; mas vencera, como se verá. Seus pais Caetano de Abreu Soares e esposa, por devoção ao Padre São Francisco e a seus filhos, dois desejos por eles bem acalentados publicamente manifestaram em 1769: foi o primeiro, ter para si e seus descendentes um jazigo na Capela de Nossa Senhora das Dores, do lado do Evangelho, naquele Convento de Nossa Senhora da Conceição, extramuros da vila e, o outro, deixar na sua descendência a administração inteira da referida capela. Para tanto conseguirem, como aquela capelinha lateral, erguida fora da igreja, mas anexa ao seu corpo central, precisava de reforma e carecia de obras de reedificação, apareceram à comunidade levando nas mãos a esmola precisa para tudo isso fazerem.
          Os frades, em 1770, concederam-lhes não só a sepultura pedida para eles e seus descendentes, mas ainda o uso e padroado da falada Capela, contando que os suplicantes a reedificassem, paramentando-a de todo o necessário e ficando com a obrigação de a fabricar sempre, segundo as determinações dos prelados quando visitassem o Convento. Esta concessão, porém, não se efectivou na vida dos fidalgos.
         Anos volvidos, Caetano José, como primogénito e sucessor no vínculo de Morgado e nos prazos nomeados por seus pais, insistiu no pedido, focando novamente a obrigação de reedificar a capela de Nossa Senhora das Dores e, para evitar mais vagares e incómodos futuros, desde logo ofereceu aos frades a casa, a horta e o monte contíguo à cerca, do convento. Não deixaram os frades fugir a ocasião, mas impuseram ainda ao suplicante a obrigação de dourar o retábulo do altar. Em compensação, o fidalgo podia fazer a ostentação das suas armas na capelinha e o síndico do convento, em lugar da fábrica perpétua, apenas aceitaria em nome da Sé Apostólica a terra oferecida.
          Corria o ano de 1779 quando se ultimaram estes ajustes, pois foi em 21 de Agosto que Caetano José tomou posse do padroado da Capela de Nossa Senhora das Dores. Ali, naquele sítio, porém, pouco tempo perdurou a prestação de homenagens à Mãe de Deus, porque os frades logo no ano seguinte, aliás sem prejuízo das outras regalias do fidalgo, mudaram a sua invocação para a de São Pedro de Alcântara e transferiram a linda e então dolorida imagem da Senhora das Dores para outro altar lateral, no corpo da igreja.
          Caetano José Soares gozava de verdadeiro prestígio em Melgaço. Não tinha alma de escravo, nem água chilra nas veias. Era um homem. De seu pai herdara a decisão, a coragem, a bravura e a prudência, tantas vezes demonstradas nas províncias do Minho, Estremadura, Douro e Beiras, quer em praça de soldado, cabo de esquadra, e sargento, quer durante dezoito anos nos postos de alferes e de tenente de infantaria, sempre a servir a Coroa e a defender a Pátria nos reinados de D. João V e de D. José I. À mãe, Dona Caetana Maria Gomes de Abreu, devia ele primores de educação. Entre as mimalhices de criança dera-lhe a beber a crença dos velhos fidalgos e, na juventude, os lábios maternos só lhe contaram a verdade da vida.
     Senhora sensata, apreciava o bem-estar e os regalos da fortuna, mas às riquezas materiais dava apenas um relativo valor. Por isso, raras vezes falava nos seus bens, alguns no casal por virem do avô paterno de seu filho, o Sr. António Soares da Nóboa, que por ter «fazendas em partes remotas aonde andam bichos e corria risco a sua vida» conseguiu de D. Pedro II, em 7/6/1694, um interessante alvará para usar espingarda ou clavina de pederneira. Em compensação os valores morais dos antepassados eram servidos com frequência à sua prole.
          Mãe extremosa e senhora inteligente, ela soube assim guiar o filho pelo único caminho direito, o da honra, ensinando-o a sentir e a viver os feitos do avô e do pai dela. O avô da fidalga, Domingos Gomes de Abreu, fora um militar brioso e valente, que numa das companhias de ordenanças da vila de Melgaço serviu mais de trinta e seis anos. Nela exercitou o posto de alferes, desde 1675 e faleceu em 22/9/1697, tendo sido pouco antes promovido a capitão da sua companhia. A folha de serviços militares atesta coragem e patriotismo e constitui uma bonita página da história da nossa terra, bem digna de soletrar-se.




[1]  Funcionário municipal encarregado de fiscalizar os pesos e medidas e de taxar os preços dos géneros. Competia-lhe ainda a distribuição dos mantimentos em época de escassez.

segunda-feira, 30 de março de 2015

OS NOVOS LUSÍADAS

Introdução


     Certo dia, como se fora um qualquer lunático, passou-me pela cabeça continuar «Os Lusíadas» escritos por Luís de Camões. Se ele, em circunstâncias assaz difíceis, sem a preciosa ajuda dos computadores, conseguiu levar a cabo aquela imensa obra, aquele monumento literário, aquele alforge de saber e imaginação, também eu, ser humano como ele, poderia construir algo parecido. Acontece que génios como Camões só surgem no planeta de cem em cem mil anos; logo, teremos muito que esperar. Os seus vastos conhecimentos, a sua capacidade de apreender tudo aquilo que o rodeava, as suas leituras, a sua vivência, a sua escrita empolgante, são irrepetíveis. Apesar de saber tudo isso, vou dar início a esse louco empreendimento, sabendo de antemão que vai ser obra pequena, defeituosa, inacabada. A vida é assim, não se pode parar. Amália Rodrigues no fado, Zeca Afonso na canção interventiva, Travassos e Eusébio no futebol, Livramento nos patins, Joaquim Agostinho no ciclismo, Carlos Lopes e Rosa Mota no atletismo, etc., foram figuras cimeiras na sua arte. No entanto, outros artistas foram bons, ou aceitáveis, sem contudo atingir a perfeição dessas estrelas. «Parar é morrer», já diziam os nossos antepassados. Por isso, mãos à obra. A história de Portugal é riquíssima, há muita matéria-prima a explorar. Quem sabe se esta ousada iniciativa não irá estimular alguém com mais talento do que eu. Aguardemos.       

Primeira Parte



1

Cantemos novamente os portugueses,
Ilustremos os seus feitos grandiosos,
Sem os defeitos que quantas vezes
Surgem aos olhos de outrem odiosos;
Não tomemos como exemplo ingleses,
Nem tão pouco outra raça d’orgulhosos;
Limitemo-nos a ser, sem estar sós,
Não renegando jamais nossos avós.

2

Marchemos, solidários, com o mundo,
Ergamos bem alto o nosso estandarte,
Digamos de onde o luso é oriundo,
De que foi feito, e com que arte;
Sem acordarmos Jeová furibundo,
O Destino, ou o temível Marte.
Que a glória está em ser, nada mais,
Tudo o resto são imagens virtuais.


domingo, 29 de março de 2015

JANELA IMAGINÁRIA

     É manhã. Fresca manhã de Abril. Agradável. Pela minha memória perpassam imagens, umas passadas, outras quase presentes. Estou calmo. De repente, porém, tudo se altera. Na rua, que avisto da janela onde me encontro, algo se passa. Pessoas apressadas dirigem-se para um mesmo lugar. Desastre, penso! E, de facto, passados alguns minutos, ouço a caraterística sirene do 112.
     Silencioso e estupefacto assisto àquela macabra cena, onde viaturas e corpos construíram estranha aguarela, tendo o vermelho como cor predominante.
     Não houve, da minha parte, qualquer espécie de reação! Quieto e solene, limitei-me a registar, como habitante de um outro mundo, o espetáculo grandioso, no qual os figurantes detinham o papel principal.
     Da ambulância foram retiradas as macas e nelas colocado o que restava desses corpos antes cheios de vida e movimento.
     O fantástico e o irreal sobrepuseram-se à crua realidade. A visão surge e move-se no ecrã da inconsciência. É um filme sem argumento, sem realizador - apenas atores representando o papel de outros atores não profissionais.
     Alguns polícias marcam o solo e fazem medições. A assistência comenta, até à exaustão, o sucedido. Fala-se de mortos, de muitos mortos, mais, sem dúvida, do que aqueles que pereceram.
     Depois tudo volta ao normal. Fica apenas o espaço, o odor do óleo espalhado, sangue coalhado.
     Fiquei horas na janela! Algo de fascinante e aterrador ali me prendia. Nem a fome, nem a sede, nem o cansaço me lembravam. Era o fascínio da morte. A sua proximidade e a sua ânsia de vida.
     As paisagens, que da janela normalmente avisto, não nasceram nesse dia! Tinham, coniventes, ficado para além das duras serras. Estava só, na minha janela!

sábado, 28 de março de 2015

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

                                                          Por Augusto César Esteves

Rien n’est plus loin de mes pensées que l’ambition de savoir tout ou de le savoir mieux q’autres ([1]).


                      De certa carta de Emile Hubner a F. Martins Sarmento


                           Oferecimento
                                                                                 
                                                                                              Esmeralda

   Porque nem tu receias a linda rival; nem eu temo se aniche no teu peito o ciúme provocado por esta amante, para mim tão cara e tão feiticeira, avalia tu própria os meus novos amores, lendo com atenção estas páginas ligeiras, escritas quase todas a teu lado. Para isso tas ofereço e, confiadamente, as deponho no teu regaço, beijando-te a mão.
                                Teu Augusto                                                                            


Conversemos leitor:

     Imperfeito e incompleto, sem dúvida, é o trabalho apresentado hoje à crítica do público. Composto de pequenos factos históricos, enfeixados sem arte e enredados com ténues fios tecidos de fantasia, mais parecerá relato a pedir encurtamento por tesoura do que descrição a largos traços da terra, da época, e das principais figuras melgacenses da revolta bairrista e patriótica de 1808. Mas como o autor não aspira à imortalidade apetecida pelo historiador ou pelo purista da língua, pois se contenta com as honras de pequeno cabouqueiro da história local, votado a carrear elementos, para outros, mais tarde, encontrarem desbravado terreno por ele achado, há muitos anos, sáfaro e ingrato, inicia-se mesmo assim a publicação de Melgaço e as Invasões Francesas. // Desaparecido do arquivo da Câmara o Livro de Actas onde fora anotado o movimento, ficou aos melgacenses um pequeno relato do feito, na História Geral da Invasão dos Franceses, escrita pelo seu contemporâneo, Dr. José Acúrsio das Neves. É ela a fonte deste trabalho. Escrita a pensar em Melgaço, serão os melgacenses quem mais facilmente pode apreender o fim desta obra e descobrir e apreciar o intento do autor. E embora o seu fundo seja exacto, por ter sido cuidadosamente alicerçado em muitas centenas de documentos, só porque versa história local, com prazer e com propósito se trasladou para antes deste prefácio aquela advertência feita por Emile Hübner a Francisco Martins Sarmento, não vão os leitores, apressadamente e de ânimo leve, julgar ouro de lei ao vulgar latão e despender muito incenso, erguendo às alturas de mestre consagrado, quem não passa de aprendiz curioso.


SOB A PATA DO CORSO

Napoleão guerreava a Grã-Bretanha numa luta de vida ou morte; ao seu carro de guerra quis jungir Portugal, tal qual tinha jungido outras nações da Europa. Como éramos uma pluma de asa de carriça a voejar sem rumo no seio das chancelarias, a incompetência e a fraqueza do Governo atraíram a Lisboa as divisões aguerridas da França. // Em 18/10/1807 o exército francês, sob o comando de Junot, atravessou a fronteira franco espanhola e em 20 de Novembro a nossa. No couce, como reforço, vieram algumas tropas espanholas. Eram aliadas. Entrou pela Beira; passou por Castelo Branco; descansou em Abrantes e, a marchas forçadas, atingiu a capital no derradeiro do mês. // Se não disparou um só tiro pelo caminho, também em parte alguma do trajecto mostrou a marcialidade das suas tropas: rotas, descalças, cansadas e famintas. Não andaram, então, émulas da Padeira de Aljubarrota à cata de franceses, embora em grande número desgarrados pelos caminhos; nem tampouco patriotas transformados em guerrilheiros abalizaram com cadáveres a trilha seguida pelos invasores. // A rapidez da marcha dos veteranos do Sargento Tempestade não causou admiração alguma à Europa em armas. O povo estava amnésico do seu glorioso passado e alheio ao dia a dia decorrente.
A Corte, para garantir a independência do país, quando não para conservar no galarim a dinastia de Bragança, fugira para o Brasil horas antes do último arranco da coluna avançada a caminho da capital. / Faltava armamento e não havia massa eficiente de tropas em Portugal; mas como no mundo existia um Corso[2], cheio de prestígio político e guerreiro, a avassalar a Europa, isso bastou para, numa Lisboa sossegada e indiferente, Junot se instalar como um bom protector do povo português, transformado, poucos dias volvidos, no anho tosquiado pelo vilão, a quem meteram a vara na mão. Pôs e dispôs a seu belo talante do país sem chefia, desprezando a possibilidade de germinarem uma atmosfera de revolta os seus actos despóticos e a actuação insolente dos seus generais.
   Tratou-nos, por isso, como escravos, pedindo-nos logo de entrada, como qualquer salteador de caminhos escuros, a bolsa ou a vida. Outra coisa não disse na proclamação de 17 de Novembro o antigo embaixador napoleónico em Lisboa, porque ele só respondia pelo seu bom procedimento se encontrasse, por toda a parte, o agasalho que lhe era devido, os víveres de que necessitasse e o habitante dos campos ficasse sossegado em casa. // Partindo do princípio – a palavra foi dada ao homem para esconder o pensamento, o antigo diplomata mascarou com as necessidades sentidas pelo país as medidas de precaução nele ditadas só pelo militar. // Decretos sucederam a decretos e editais a outros editais e, assim, foram substituídas autoridades portuguesas, atropeladas as nossas leis e desprezados os nossos costumes. Desdenhoso do nosso brio, não dando apreço ao nosso patriotismo, mandou picar ou retirar dos edifícios os escudos com as armas nacionais e recolher em depósitos as nossas bandeiras; licenciou, pouco a pouco, a maior parte das nossas tropas e fez recolher em Lisboa as suas armas. // Começando por exigir de comerciantes um empréstimo forçado de 800 contos, acabou por extorquir-nos, em nome do seu Imperador e como indemnização de guerra, o tributo de cem milhões de francos, ou seja, o de quarenta milhões de cruzados. Os seus oficiais, seguindo-lhe as pisadas, tudo nos requisitavam e os soldados, imitando a rapacidade dos chefes, iam ensacando tudo quanto de valor encontravam à mão de semear. // Os espanhóis comparsavam bem com os franceses; onde estavam não se distinguiam da gente de além-Pirinéus, porque eram o seu vivo retrato, retocado, no entanto, para apresentar uma que outra vez aspectos de gentileza. O general Tarranco, entrando por Valença, correu a ocupar o Porto militarmente.
   Fê-lo em 13/12/1807 e, nesse mesmo dia, mandou afixar uma proclamação, em que havia rosas e espinhos. Pelo fim do ano guarneceu com destacamentos das suas tropas algumas praças de Entre-Douro e Minho; mas a de Melgaço não recebeu qualquer guarnição militar. Se alguma aqui esteve, passou como a sombra, sem ficar na terra o mais pequeno sinal: nem um morto, nem um casamento, nem um filho e ainda bem. // Tarranco era inteligente, militar brioso e político atilado, e tudo isso mostrou não espezinhando o norte de Portugal; não se imiscuindo na actuação das autoridades nortenhas, nem tão pouco fazendo tábua rasa das velhas leis e dos antigos costumes vigentes na região ocupada pelo seu exército. Isso deveu concorrer para que as armas nacionais esculpidas nos edifícios públicos de Melgaço não fossem picadas, porque as autoridades locais limitaram o cumprimento da ordem ao seu escondimento passageiro, por meio de uma camada de barro amassado com cal. Mas a maioria das escopetas das ordenanças lá se foi para o Porto e, atrás delas, as rendas públicas do concelho.
   Salvou-se apenas a bandeira do Senado, certamente por mostrar só as armas de domínio de Melgaço. // Por morte de Tarranco, em 26/1/1808, ficou a ocupar o norte Carrafo e quando este, em 9 de Abril, marchou para Lisboa com as suas tropas, substituiu-o Ballestá. Como, porém, a Espanha de aliada de Napoleão se ia transformando em vítima, Abril chegou à península prenhe de ameaças para as armas francesas. Em Portugal protestava-se; e se do protesto se não passava à violência era por falta de cabeças dirigentes. E Maio trouxe manifestações populares hostis em Espanha e em Portugal: em Madrid, abafadas em sangue; e no Porto, impunes, felizmente.
   Nesta cidade, em 25, fez-se o primeiro pagamento da contribuição de guerra. Se, por qualquer capricho da Fortuna, não ficou no Porto para os espanhóis, naqueles primeiros carros, como lembrança de Melgaço lá ia também alguma coisa, a fim de ser conduzida para França, no fim da campanha, graças à malfadada Convenção de Sintra. E isto se escreve apesar de ninguém saber onde param os termos de entrega das pratas das igrejas, capelas, confrarias e irmandades do nosso concelho, termos lavrados na primeira quinzena do mês de Março, ao abrigo das instruções publicadas no dia 27 do mês anterior, na casa do tesoureiro da décima, onde os culturais[3] foram obrigados a levar aqueles bens igrejários confiados à sua guarda, para serem relacionados e pesados na frente do Juiz de Fora da comarca, e isto se escreve e isto se afirma, porque na falta de tais documentos, guarda-se na minha casa memória de outra espécie. Com toda a simplicidade, mas a rescender tanto limpeza de mãos como receio das consequências susceptíveis de surgirem num futuro incerto, ainda e sempre possível naqueles tempos de invasão estrangeira, se acaso não representa somente o simples protesto contra a forçada entrega ao invasor das coisas de Deus di-lo um velho Livro de Actas duma velha confraria da Vila – a do Espírito Santo, fundada aí por 1578 e há muito desaparecida para os actos do culto.
Ouçamos a voz longínqua: «Aos seis dias do mês de Março de mil oitocentos e oito anos por ordem do Governo deste nosso reino se remeteu para a cabeça da comarca a prata desta confraria que foi a cruz com sua haste, o caldeiro com seu hissope, umas galhetas com seu prato, um turíbulo com sua naveta, e a vara do reverendo Prior, que tudo pesou doze arráteis e meio e meia quarta, digo e meio, e uma quarta. E determinamos que para o transporte da dita prata visto as ordens determinarem ser à custa da confraria, o tesoureiro desta satisfará o importe do seu transporte que se lhe levará em conta. E, para constar, - se fez este termo, que assinamos. Em Mesa do dia, mês, ano ut supra.

O Prior Pedro da Ribeira Araújo Castro
O Padre Francisco António da Cunha
O Eleito o Padre João Manuel Durães
O Promotor o Padre Manuel Álvares Torres
O Procurador o Padre José Lopes

          E isto sabia-se aqui na terra, era público e era notório. Comentava-se. Havia más vontades, porque o conhecimento da exigência francesa chegara a todos os eidos. Mais: a cada canto ouviam-se ameaças e se houvesse uma distracção, se a pata do Corso, por qualquer circunstância fortuita, aliviasse a pressão esmagadora, o povo de Melgaço imitaria o Porto e faria a sua manifestação hostil. // Portugal inteiro era um molosso acorrentado por uma guita. Se a guita rebentasse, mordia. Rebentou-a no Porto a Espanha, proporcionando ao continente português o ensejo de um levantamento em massa. Em Melgaço foi ainda um espanhol quem veio comunicar o sucesso e não precisou de encarecer a oportunidade oferecida pela Providência à Vila mais setentrional do país, sedenta de ressegurar nas suas mãos as guias do seu destino.
          Se houvesse vindo a incitar à revolta, talvez tivesse deixado tristonha sombra a empanar o brilho da jornada. No Porto, capital do norte e cabeça de metade do país, representando Junot estava o general Quesnel, a guardar, feito cão de fila, o general Ballestá. Este, recebendo ordem da Junta Revolucionária da Galiza, reuniu as suas tropas e no dia 6/6/1808, prendeu o general francês e o seu Estado-Maior, aprisionou a pequena guarnição francesa do Porto e enquadrando esta entre as baionetas dos seus soldados, entregou Quesnel aos portugueses. Confiando na sua boa sorte, abalou depois para a grande aventura de Espanha.
           O Senado da capital do norte, forçado pelos patriotas, marcou para o dia seguinte as cerimónias da revolta; mas o receio da vingança de Junot, avolumando-se nas sombras da noite, fez esfriar o entusiasmo e abortar a revolta. Havia de estalar alguns dias depois do levantamento de Melgaço.




[1]  Tradução dos Coordenadores da Edição das Obras Completas: «Nada está mais longe de meus pensamentos do que a ambição de tudo saber, ou sabê-lo melhor do que os outros.»
[2] Napoleão Bonaparte. Imperador dos franceses. Nasceu em Ajácio, Córsega, a 15/8/1769 e faleceu na ilha de Santa Helena (Atlântico sul) em 5/5/1821. Sobre ele poder-se-iam escrever milhares de páginas, mas a sua vida e feitos andam espalhados por centenas de livros e filmes, por isso não vale a pena estar aqui a desenvolver a sua biografia. 
[3]  Leia-se cultuais — aqueles que tratam do culto.

sexta-feira, 27 de março de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

Prólogo


     Olá! Eu sou o Cândido da Matilde. Já tenho alguma idade, cabelos brancos, algumas rugas. Todos os idosos, salvo raras exceções, têm uma história para contar. Eu também vou contar uma: – a minha. Como quase todas as estórias de gente humilde, é triste, muito triste, por vezes atingindo o limiar do trágico; descreve a minha vida, enquanto jovem, antes de ingressar no serviço militar – e tudo isso aconteceu entre os anos quarenta e setenta do século XX. Tive a desdita de nascer onde nasci, num lugar recôndito do Alto Minho, lugar fronteiriço com a vizinha Galiza, na cova do lobo, onde o contrabando era dono e senhor, e onde a lei era diariamente driblada; tive também a desdita de não ter pai legítimo, isto é, ser filho de pai incógnito, e ter, por minha desgraça, uma mãe alcoólica, uma seguidora fiel de Baco, grande consumidora do vinho de Noé, o primeiro a fabricá-lo e a bebê-lo em excesso, por conseguinte o primeiro bêbado da história da humanidade, segundo o antigo testamento.
     Padeci muitíssimo: tive em nossa casa um bruxo, amante da minha mãe, autoritário, um homem que falava o dialeto dos ciganos, pois segundo parece com eles tinha percorrido a Península Ibérica. A minha progenitora aderiu ao espiritismo e frequentava todas as casas onde houvesse velórios para ali falar de mortos e de almas de outro mundo. Apoderou-se de mim o terror, dominou-me por completo, os traumas foram crescendo comigo, mas às tantas resignei-me à minha pouca sorte, aceitei os desígnios dos céus e dos deuses. A minha infelicidade foi tão grande, os astros tão desfavoráveis me foram, que a própria namorada me abandonou para casar com um emigrante muito mais velho do que ela.
     Situo a narrativa no espaço de vinte anos, sem obedecer a regras muito precisas, ou a preciosismos desnecessários; deambulo pelo tempo de duas décadas ao sabor da memória, minha testemunha e confidente, e minha arca de recordações. A partir desse marco cronológico revivo as minhas lembranças amargas, extasio-me com a vida, apesar de ela me ser adversa, ziguezagueio por aqui e por ali. Por estranho que isso vos pareça, eu não me sentia magoado com ninguém; achava que cada um de nós surgia no mundo já com o seu destino traçado, tudo estaria escrito no “Grande Livro das Datas”, não poderia fugir-lhe, e pensava, ingenuamente, que a revolta levaria ao caos. Era nessa altura um filósofo do ruralismo, um pobre diabo que ninguém levava a sério. Em 1967 ingressei na vida militar. A partir dessa data nada mais vos contarei; talvez noutra ocasião.
     Não quero abusar da vossa paciência e amabilidade, do vosso precioso tempo, por isso vou imediatamente pôr-vos em contacto com as odiosas e simpáticas personagens, levar-vos ao encontro de situações que vos parecerão familiares, como se as tivessem vivido, ou pelo menos presenciado a curta distância, mas que da vossa realidade pouco mais têm do que a roupagem, pois embora a maior parte dos factos narrados possam ter acontecido, para mim aconteceram sem dúvida, muito daquilo que vão ler a seguir é produto da minha imaginação e da prodigiosa fantasia, à mistura com a minha, e apenas minha, realidade, como se eu recuasse no tempo, dentro da tal máquina ainda não usada, mas já inventada, e engendrasse toda uma trama rocambolesca e absurda para depois pegar na pena e a descrever para os meus leitores. Ninguém se iluda: a realidade, tal como ela foi, jamais se submeterá à ficção, não é passível de descrição, seja de que tipo for, porque escapam sempre os pormenores.               
     E a prova do que afirmo é visível na chamada história ciência: cada historiador escreve e reescreve a sua versão da época em estudo. Se a realidade fosse descritível, só poderia haver uma única versão – não é verdade? Mas aqui, nesta novela, ou pequeno romance, trata-se de ficção virtual, quase todas as personagens foram criadas, a fim de servirem a minha história, e se confrontarem com as autênticas e genuínas. Todas as situações, todo o enredo, as intrigas, as infidelidades e as traições foram tecnicamente – mal ou bem - elaboradas. O ambiente natural e psicológico é apenas o cenário onde decorre todo o espetáculo da vida, a feira de todas as vaidades mundanas. Costuma-se avisar: «qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.» Aqui não: o verdadeiro e o possível passeiam juntos, não de braço dado, mas quase sempre de costas voltadas, como se a vida e a não vida pudessem coexistir no mesmo mundo de ideias e ideais, e não de ossos e sangue.
     Percorram então comigo os carreiros sinuosos e agrestes da minha narrativa:      

quinta-feira, 26 de março de 2015



FIGURAS MELGACENSES


Frei Francisco Melgaço

      Nasceu no concelho de Melgaço no ano de …? (não descobri até agora a data de seu nascimento). Foi religioso da Ordem de São Bernardo. Escreveu várias obras, relacionadas com a doutrina cristã, as quais não foram impressas. Os seus manuscritos (escritos em latim) conservam-se na livraria do Convento de Alcobaça, à espera de um especialista que os analise e divulgue.

(ver Dicionário Histórico, Biográfico, Bibliográfico, Heráldico, Corográfico, Numismático e Artístico. João Romano Torres – Editor. Lisboa – 1903. Página 960).    

*

 Frei António de Santa Maria dos Anjos Melgaço

      Nasceu no concelho de Melgaço a 17 de Junho de 1718. Foi frade franciscano. Professou no Convento de São Francisco de Lisboa a 22 de Janeiro de 1731. Fez os estudos de Filosofia e Teologia no Colégio de São Boaventura da Feira, em Coimbra, entre 1731 e 1737. Foi professor nos Estudos de Mafra (fundados por D. João V) nos anos de 1737 a 1752.
      Devia ser uma pessoa deveras inteligente e curiosa, pois o próprio rei o incita a prosseguir os estudos. Segue os conselhos do monarca, e em 1743 adquire um doutoramento em Teologia na Universidade de Coimbra, talvez o primeiro melgacense a conseguir tal feito.
     Como escritor, deixou várias obras, todas elas redigidas em latim. Uma delas tem por título «SCOTUS ACADEMICUS, seu Philosophia Peripatetica ad commodiorem regalis Academiae Mafrensis usum, juxta mentem venerabilis, subtilisque Magistri Joannis Duns Scoti.» (Tomo I, Lisboa, 1747).
     Por ter sido eleito provincial «da sua província», em 1751, viu-se obrigado a suspender por algum tempo a continuação da obra. O segundo volume estava em impressão apenas no ano de 1755, o qual se queimou aquando do grande terramoto. No Convento de São Francisco arderam também, nessa altura, outros escritos da sua autoria, que tinha prontos para publicação.      
     Em 1759 publicou, completamente revisto, o tomo II do «SCOTUS ARISTOTELICUS». Os dois volumes debruçam-se sobre a «logica parva», ou seja, pequena lógica, e a «logica magna», que significa grande lógica, «e interessam para o conhecimento do movimento de ideias em Portugal no século XVIII e dos estudos na escola de Mafra».
     Faleceu em Vila do Conde a 14 de Agosto de 1780, com 62 anos de idade.  
     Quem desejar consultar a bibliografia pode fazê-lo em {Frei António do Sacramento, História Seráfica, sexta parte, manuscrito 703, da Torre do Tombo. / Memória da forma com que Dom João o Quinto mandou para Mafra religiosos para Lentes de Faculdade, manuscrito 801, folhas 682 e seguintes, do arquivo da casa Cadaval (Muge). / A. A. Andrade, A Orientação do Estudo da Filosofia dos Franciscanos, in Brotéria 43 (1946), páginas 43 a 45.}  


                                                (Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, páginas 648 e 649).    

quarta-feira, 25 de março de 2015

AO SABOR DO VENTO


Deambulei por Melgaço,
tudo o que vi registei;
percorri, passo a passo,
o paraíso de Tasso,
o berço da nossa grei.

Olhei para Espanha e vi
incêndios e mais incêndios;
as chamas, tal colibri,
brilhavam, como quem ri,
num festival de dispêndios.

As nossas serras, peitadas,
criminosas, Barrabás…
vestiram roupas aladas,
subiram céus, encantadas,
bailaram c’ as fadas más.

Vi a Fonte do Jordão
abandonada, sozinha;
por que lhe chamam, então,
a Fonte de São João,
assim tão desprezadinha?!

A Rua Nova de Melo
desapareceu por magia;
houvera nome singelo,
e por isso, o camartelo,
não a poupou na razia.

E o Largo da Calçada
mudou de nome também;
é agora a Praça Fina
da senhora e da menina,
do “fidalgo” sem vintém.

A pedra do velho abade
nas Carvalhiças dormece;
de que nos vale ser padre,
arcipreste, ou mesmo frade,
se, na morte, o povo esquece?

E as aldeias, tristinhas,
dormem sono repousante;
tendo silvas por vizinhas,
na primavera andorinhas,
e no verão o emigrante.

Vi a morte arrebatar
um homem novo ainda;
estava o sol a brilhar,
e na janela a cantar
uma jovem muito linda.

Fiquei triste, porque não,
por vê-lo partir tão cedo;
homem de bom coração,
mas frágil como a ilusão,
e leve como um segredo.

Vi a Casa da Cultura
cheia de livros e quadros;
vi sorrisos com fartura,
cortesia e mesura,
mas os ditos bem fechados.

As belas Termas do Peso
num silêncio sepulcral;
como menino indefeso,
no meio de lume aceso,
esperando o pai natal.

O comércio moribundo,
os balcões sem clientes;
ao rio não vi o fundo,
porque está sujo, imundo,
com suas águas doentes.

Vi tudo isso e vi mais,
que não interessa narrar;
o Convento de Fiães,
as muralhas medievais,
as velhas a namorar.

Novos vícios verdejando,
num chão tingido de lodo;
almas simples rastejando,
já tossindo e rouquejando,
alvos fáceis do engodo.

Mas esqueçam, por favor,
tudo o que acima escrevi;
foi num impulso criador,
num frenesim estupor,
pois nada disso eu vi!

terça-feira, 24 de março de 2015

FIGURAS MELGACENSES

Introdução


     Alguns leitores vão pensar, certamente, que só existiram estas personalidades no nosso concelho, ou então que foi uma escolha pessoal, de acordo com as minhas preferências científicas ou ideológicas. Nada disso. Para mim todos aqueles que nasceram, ou residiram, em Melgaço são importantes, desde que possuam obra feita e com algum valor, segundo a minha própria avaliação (sujeita, obviamente, a reparos e retificações), ou de pessoas credenciadas para esse efeito. Já escrevi outras biografias, que foram publicadas em jornais e no “Dicionário Enciclopédico de Melgaço”. Algumas delas já tiveram o privilégio de figurar nos escritos do Dr. Augusto César Esteves e de Aldomar Rodrigues Soares (Mário), mas eu pretendo aqui dar-lhes realce, visto que os melgacenses em geral já as empurraram para uma zona de sombra, para o enigmático limbo. A Câmara Municipal, nestes últimos trinta anos, tem rasgado bastantes ruas e avenidas, mas o nome desta gente não figura aí! Qual o motivo? Na minha opinião apenas o esquecimento é o culpado, pois não existem quaisquer razões plausíveis para os votar ao ostracismo. // Hermenegildo José Solheiro, Dr. António Augusto Durães, Dr. Augusto César Esteves, entre outros, merecem ter o seu nome nas ruas, avenidas e praças melgacenses; julgo que ninguém porá isso em causa. Mas também José Cândido Gomes de Abreu, um homem que lutou toda a sua vida pelo engrandecimento da sua e nossa terra, que fez obra no seu tempo, devia ter o seu nome em grande destaque na sede do concelho. Mas não: tem hoje apenas a lembrá-lo uma pequena rua, quase uma travessa, antiga caneja. O Largo da Calçada, que ostentava o seu nome, foi dado a outro melgacense, Amadeu Abílio Lopes, nascido em Chaviães, generoso para com o concelho nos últimos anos da sua vida, mas o qual residiu, desde a adolescência, no Brasil, vindo à terra apenas em gozo de férias. É certo que nessas ocasiões dava sempre algum dinheiro aos BVM, talvez ao Hospital da Misericórdia, doou as suas ações da empresa “Quintas de Melgaço, Agricultura e Turismo, SA” (da qual foi um dos fundadores), à Câmara Municipal de Melgaço, mas isso não chega, não é altruísmo suficiente, quanto a mim, para o promover a figura concelhia. Dinheiro é dinheiro, obra é obra. Imaginem só se a moda pegava e todos aqueles que têm ações de sociedades anónimas as doassem às Câmaras Municipais em troca de uma Avenida, Praça, Rua…? Havia de ser bonito!
     Os outros aqui biografados jamais mereceram sequer um simples elogio dos poderes públicos! No entanto vemos ruas e avenidas com nomes de não melgacenses, alguns dos quais provavelmente nunca puseram os seus pés em terras de Melgaço, ignorando porventura a sua existência. Dou somente dois exemplos: Afonso Costa – foi primeiro-ministro na I República (1910-1926), publicou legislação meritória, tal como a criação da Conservatória do Registo Civil, a separação da Igreja e do Estado, o divórcio, a reforma do ensino, a abolição dos títulos nobiliárquicos, etc.; e Salgueiro Maia – militar de Abril, o qual ajudou a derrubar o regime corporativista (1933-1974). Foram sem dúvida pessoas importantíssimas, a quem devemos respeitar e admirar. Que todos eles tenham o seu nome nas ruas de Lisboa e Porto concordo plenamente, pois foram figurais nacionais e essas cidades têm centenas de ruas e cabem lá todos; agora em Melgaço, com um número escasso de ruas, eles estão a ocupar indevidamente o lugar dos melgacenses ilustres, o que não devia acontecer. «O seu, a seu dono».
    A antiga Rua de Baixo ostenta agora o nome do padre Justino Domingues. Que eu saiba esse sacerdote, já falecido, nunca fez nada de significativo pelo concelho! Os cargos que teve: pároco da freguesia da Vila, da legião portuguesa, arcipreste, e pároco da Santa Casa da Misericórdia são – que eu saiba –, cargos religiosos, ligados à sua profissão e à sua ideologia e crença. Alguém achará porventura que têm a ver com o desenvolvimento, seja material ou cultural, do nosso torrão? Era um homem com alguns saberes, boa pessoa, ótimo conversador, mas nada nos legou, pelo menos que eu tenha conhecimento. Alguém terá? Uma rua? Então todos os sacerdotes que nasceram ou exerceram o seu múnus em Melgaço teriam direito a uma rua na Vila! Se querem prestar homenagem a ministros da Igreja Católica então selecionem. O padre Bernardo Pintor e o padre Aníbal Rodrigues nasceram em Castro Laboreiro; esses, que eu saiba, deixaram alguma obra. O segundo tem um busto e uma avenida em Castro, é certo. E o primeiro?! Os irmãos Vaz: padre Carlos, cónego António e padre Júlio, nasceram em Fiães. Apesar de todas as polémicas, foram muito mais importantes para o concelho do que o padre Justino. Intervieram publicamente, criaram um jornal, através do qual levaram o nome de Melgaço a diversos países do planeta. O primeiro foi provedor da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço durante muitos anos, e arcipreste do concelho, e o segundo e terceiro foram professores, jornalistas e escritores, com obra publicada.
    E por que não homenagear os professores universitários melgacenses? Sobretudo aqueles que já têm uma obra considerável? De que estão à espera? O Professor Doutor José Marques, nascido na freguesia de Rouças, é uma figura consensual. Para quando uma homenagem digna do seu prestígio?
    A antiga Travessa da Rua Direita é chamada agora “Viela Pedro Pires”. Esse senhor viveu na Idade Média e foi prior do mosteiro de Longos Vales, sito no termo de Monção. Mandou erguer, à custa do tal mosteiro, parte das muralhas do castelo de Melgaço, recebendo em troca consideráveis privilégios reais.
    Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, que deu foral a Melgaço, tornando-o concelho, preocupando-se com o seu desenvolvimento, com a sua defesa, não será mais importante do que o prior Pedro Pires?
    E o rei João I, que escorraçou os castelhanos do castelo, ou praça de guerra, que pelejou duramente para o reaver, não será mais importante do que o prior de Longos Vales ou do que a lendária Inês Negra, cujo nome foi inventado (salvo erro) pelo Conde de Sabugosa? No seu livro “Neves de Antanho”, página 38 (Livraria Bertrand, 3.ª edição) escreveu: «Era uma mulher daquela região, a quem chamavam Inez Negra
     E os naturais de Melgaço que combateram na 1.ª Grande Guerra, morrendo em França em 1917 e 1918 sob as balas das armas alemãs? E os melgacenses (militares ou não) que ficaram feridos e morreram nas matas africanas entre 1961 e 1974?    
     Espero que não sejam mal interpretadas as minhas palavras. Eu apenas desejo que o nome daqueles conterrâneos (ou não, mas ligados à nossa terra pelos seus feitos), honrados, e com mérito (pondo de lado ideologias, credos e preconceitos, se possível) os quais trabalharam uma vida inteira em prol do concelho, quer materialmente, como os políticos, quer na área da cultura, como os escritores, pintores, artesãos, etc., sejam oficialmente reconhecidos, tratados com dignidade, e que sirvam de exemplo aos atuais e futuros habitantes de Melgaço. Devemos sentir orgulho neles, lembrá-los constantemente, sobretudo nas escolas, estudar e enaltecer o muito ou pouco que nos legaram. 
     Eu sei que existe o problema dos critérios. O que é bom para uns pode não prestar para outros. Tudo se mede e tudo se compara. Eu pauto-me pela obra. Quem não a tem não a pode exibir. E até aqueles que a deixaram (grande ou pequena), essa pode não agradar a gregos e troianos. Enfim: «cada cabeça, sua sentença», como já diziam os nossos avoengos. Esperemos no entanto que um dia se faça justiça.
     Eu reconheço que o poder de decisão está nas mãos dos políticos que se candidataram democraticamente às eleições e as ganharam. São eles, durante o seu mandato, que decidem, que se responsabilizam pelo cumprimento de tudo aquilo que prometeram durante as campanhas. Não quero, nem posso, substituí-los, mas deixem-me ao menos desabafar e sugerir. E nunca se esqueçam, aqueles que detêm o poder local, duma coisa: o concelho de Melgaço não é da Câmara Municipal. Pelo contrário: a Câmara Municipal é que é de Melgaço.

     Há tempos fui dar um passeio pelos arredores do Centro Histórico e no caminho dei de caras com ruas novas: Rua da Caneja, Rua da Fonte, Rua do Mercado…! Só porque houve outrora ali uma tosca caneja, vai de se lhe atribuir o nome! Se seguíssemos esse paradigma, teríamos a Rua do Campo do Milho, a Rua do Canastro, a Rua da Horta, a Rua do Muro, a Rua do Rego, etc. Quanto à Fonte, esqueceram-se do tanque de lavar roupa. Aquela pequena obra do século XIX era composta de fonte e tanque. Por outro lado, já tínhamos a Fonte da Vila. Eu prefiro o nome de seres humanos. E mais: gostava de ver nas placas uma legenda, elucidando o transeunte sobre aquela personalidade – quem foi, o que fez...