domingo, 30 de agosto de 2015

QUADRAS AO DEUS DARÁ

Por Joaquim A. Rocha


desenho de Luís Filipe

14

Todos somos maniquéus,
Crentes ao fim e ao cabo;
Cremos num eterno deus,
Mesmo que seja um diabo.

15

Eu sou um homem esperto,
Sei tudo sem aprender;
Sou camelo no deserto,
Mato a sede sem beber.

16

Quando ao longe eu te vejo,
Pareces-me coisa bela;
Ao perto não te invejo,
És apenas sombra dela.

17

Pobre de ti pensionista,
Se tens de viver da pensão;
Tens de ser ilusionista,
Transformar a pedra em pão.


sexta-feira, 28 de agosto de 2015

POEMAS DO VENTO 

Por Joaquim A. Rocha

desenho de Rui Nunes


PERCURSO

Nasci em Melgaço
concelho do Minho;
fonte do bagaço
e do verde vinho.

Nasci em Cevide,
de Cristóval lugar;
num berço de vide
aprendi a sonhar.

Dois rios à beira:
Trancoso e o Minho;
formavam fronteira
c’o país vizinho.

Nasci numa casa
com muros de pedra;
onde o sol abrasa
e o frio medra.

No telhado antigo
a chuva passava;
mas o astro amigo
depressa a secava.

Num grosseiro leito
dormíamos três;
e no parapeito
um gato maltês.

Sem chave, uma porta
de madeira-pinho;
já bichada e torta
como um velhinho.

Um porco na corte
grunhia com fome;
esperava a morte,
a faca de Cosme.

Pintos e galinha
viviam connosco;
corriam asinha
pelo monte tosco.

Um rafeiro cão
ladrava contente;
tinha um coração
igual ao da gente.

Seguiu a mamã
da vizinha aldeia;
chamavam-lhe Pã
por ter cara feia.

Estive seis anos
nesse “paraíso”;
com nossos hermanos
trocando sorrisos.

Depois fui prà Vila
 - civilização –
ser macho de lila
numa geração.

Lá fiz a primária,
e mais qualquer coisa;
a pele-alimária
deixei-a na loisa.

Aprendi ofício,
foi de sapateiro;
grande sacrifício,
preso o dia inteiro.

Inda me empreguei
no Grémio da terra;
onde só ganhei
uma chica perra!

Aos vinte pràs matas
da Guiné-Bissau;
ouvindo balatas
das armas do mau.

Voltei certa vez
da guerra do régulo;
soldado de Fez,
cansado e incrédulo.

Restei-me perdido
pela capital;
do mundo esquecido,
do bem e do mal.

À noite estudei,
qual manga d’alpaca;
pra vir a ser rei
de Goa ou Malaca.

Contínuo primeiro,
depois aspirante;
a lugar cimeiro
cheguei num instante.

Curso superior,
professor de línguas;
cheguei a doutor,
olvidei as mínguas.

Recordo Melgaço,
cheio de emoção;
é ele o regaço,
da minha ilusão.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

Por Augusto César Esteves



... (continuação)

«Um escudo esquartelado, no primeiro quartel as armas dos Sousa por privilégio que são escudo esquartelado, no primeiro e quarto as quinas de Portugal sem orlas de castelos, no segundo e terceiro em campo de prata um leão de púrpura, no segundo quartel as armas dos Castro, em campo de prata seis arruelas azuis postas em duas palas, no terceiro quartel as armas dos Lobato em campo sanguinho, três castelos de prata em roquete, com portas e frestas lavradas de preto, e uma orla de ouro e nela oito lobos negros a seu direito, no quarto quartel as armas dos Menezes Teles, que são esquarteladas, no primeiro e quarto, em campo de ouro, um leão de púrpura, no segundo e terceiro em campo de prata também um leão de púrpura. / Elmo de prata aberto guarnecido de ouro. / Paquife dos metais e cores das armas. / Timbre o dos Castro que é um caranguejo de prata arruelado de arruelas azuis com as duas bocas pegadas no elmo e por diferença uma brica vermelha com um trifólio de ouro

          Pondo para o lado os papéis referentes à compra do campo de Corujeiras a D. Isabel Maria da Visitação, uma senhora nascida em Prado e arrumada no Recolhimento de S. Tiago em Viana Foz do Lima, peça herdada de seu pai, o Reverendo Sebastião Soares, de Rouças, lera e levara o mesmo destino a procuração passada em 2/7/1765 constituindo procuradores a Lourenço José Gomes de Abreu e a Francisco Xavier Gomes de Abreu, filho e neto do fundador da Capela da Pastoriza, residentes naquela vila de Viana, para cobrarem do pagador geral do partido da cidade do Porto o dinheiro que se lhe estava devendo da comedoria da besta da equipagem do tempo da triste campanha de 1762, durante a qual ele foi capitão do regimento da vila banhada pelo Lima. Com gesto de enfado atirou para longe de si um outro papel, porque nele se escrevera:

       10.º- «Que o dito avô comum destas partes, Diogo António, sendo sargento-mor da dita praça de Monção, foi preso na praça de Valença à ordem do Governador das Armas desta província e na ocasião em que estava preso na dita praça donde reside e é natural o A. Gabriel P[ereir]a aí o moveram pelas sobreditas causas a não impedir o dito seu casamento o que aliás havia de fazer e justas razões

          Mas salientou, e muito bem, como tendo enviuvado de D. Escolástica Abundância Teixeira de Freitas e Faria, de Guimarães, irmã do Licenciado Miguel de Freitas Teixeira de Faria, Juiz de Fora em Vila Nova de Cerveira e depois Ouvidor de Cabo Verde, passou com o posto de capitão de infantaria aos Estados do Grão-Pará e de Mato Grosso, no Brasil, por onde desbaratou um ror de anos da sua vida. // Dali, após mil canseiras para fazer da aldeia de Santo António de Trocano a progressiva vila de Borba a Nova e nela ser o primeiro juiz ordinário e o seu governador e exercer outras funções a contento dos altos poderes da colónia, como voltou à pátria a tempo de ser incorporado naquela campanha de 1762, em que lhe morreu o primogénito e como acabou, graças ao seu valor e à sua valentia, por comandar com o posto de Sargento-Mor a praça de Caminha e, em seguida, a de Monção, onde faleceu em 1780, num quarto do «Hospital Real em que morava
          De seu trisavô, António de Castro de Sousa Lobato, também familiar do Santo Ofício, Cavaleiro da Ordem de Cristo e capitão de cavalos, descreveu como nas fraldas da Quinta do Fecho, nos terrenos herdados do pai e noutros por ele comprados, a meio caminho da vila e à margem da primitiva estrada, fez o vínculo do morgado de Galvão à custa dos terços dos bens seus, de sua esposa, D. Joana Maria de Menezes Cardoso, oriunda de Guimarães e das seis irmãs dele, D. Madalena Felgueiras, D. Francisca de Cavedo Araque, D. Jacinta Osores de Castro, D. Maria Lobato de Castro, D. Antónia Soares e D. Juliana Felgueiras, todas sem noivo, no dia 16/12/1703 e os encargos impostos aos sucessores e administradores, nada menos que treze missas, rezadas no decurso do ano na capelinha de Santo António, construída pertinho do solar, e a obrigação de tomarem «sempre os apelidos dos Castro, Sousa e Menezes, em memória dos primeiros instituidores donde descenderam

          E contando como seu trisavô, em 1706, sob o comando do Marquês de Minas fez as campanhas da Guerra da Sucessão ao trono de Espanha, batendo-se contra as tropas franco-espanholas comandadas pelo duque de Bervick, expôs a sua acção na conquista e destruição da vila de Brozas, no cerco e tomada de Alcântara, na entrada em Moraleja, em Coria, Plassença, Almorás, Ciudad Rodrigo, Salamanca e, de vitória em vitória, disse como se ocupou Madrid e se fez aclamar rei de Espanha a Carlos III. // E terminou lembrando como em 1707 o exército português, deixando os quartéis de inverno e indo procurar o inimigo, o encontrou em Almansa e com ele travou no dia 25 de Abril uma batalha funesta para as nossas armas. Obraram prodígios de valor os portugueses, ninguém o contesta; mas isoladamente, sem qualquer unidade de orientação e, por isso, perderam a batalha, deixando a juncar o campo milhares de mortos e nas mãos do inimigo milhares e milhares de prisioneiros. Entre estes ficou o filho do seu trisavô materno, o João, o primeiro administrador do Morgado do Pombal e, entre os mortos, o seu trisavô paterno, aquele que deu lustre e grandeza à nobre Casa das Sete Donas. // (continua)...

domingo, 23 de agosto de 2015

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha


desenho de Manuel Igrejas


TEMPOS DE CRIANÇA


     Ao olhar atentamente para uma fotografia inserta no número 966 de A Voz de Melgaço, de 1 de Julho de 1992, apercebi-me como o tempo passa! Nela está o Zé Miguéis, o cabelo emigrando, cara de vovô! Veio-me então à memória a nossa meninice passada a brincar naquele casarão perto do Cine Pelicano. Como seu pai já tinha falecido, o José vivia com a mãe, D. Sara, com a irmã, Lalá (Laura), com o irmão, Toninho, e com seu avô paterno, um velho marinheiro já reformado. A sua mãe, uma senhora muito bondosa, deixava-nos utilizar uma sala enorme do rés-do-chão, uma espécie de armazém, com traves à vista, pelas quais passávamos uma grossa corda que atávamos a uma tábua, preparada previamente para esse efeito, servindo-nos assim de baloiço. O José distinguia-se das outras crianças pela educação esmerada, pelo asseio das suas roupas. Nós vestíamos de qualquer maneira! Díziamos asneiras com o à-vontade de uma varina; pelejávamos como autênticos arruaceiros; roubávamos fruta por prazer e por necessidade. O José Miguéis, não! As nossas brincadeiras com ele eram só entreportas. Mesmo assim ele não pôde evitar alguns insultos e ameaças das crianças semi-selvagens que nós éramos! Ainda na adolescência, suponho, foi para o Brasil. A sua irmã, que tinha casado com um dos filhos do fotógrafo e taxista, senhor Pires, e já aí se encontrava, mandou-o ir para a sua beira, convencida talvez de que nesse grande país ele encontraria condições de vida melhores do que em Portugal. Segundo me informaram, há uns anos atrás visitou Melgaço. Não reconheceu ninguém, e poucos o reconheceram a ele! Apesar de tudo, prometeu voltar; a nossa terra deixa sempre saudades. Mas voltando à meninice. Naquele tempo éramos quase todos pobres: uns mais do que outros; mas para os mais pobres os filhos dos comerciantes eram muito ricos! Os filhos dos taberneiros eram considerados ricos! Claro que havia em Melgaço ricos a valer. Contavam-se, no entanto, pelos dedos das mãos. Mesmo em pobreza a vida em Melgaço não decorria sob o signo da tristeza ou do pessimismo. Existia uma grande alegria de viver, um convívio saudável, apesar das constantes escaramuças travadas entre mulheres, mas logo esquecidas para mais tarde poderem ser recomeçadas! Os homens, de uma maneira geral, não se metiam nas brigas das esposas, pois consideravam isso indigno de um verdadeiro latino. Essas rixas começavam muitas vezes no tanque público, algures no Rio do Porto, aonde as mulheres iam lavar a roupa. Nesse tempo não havia a máquina de lavar e as mulheres juntavam-se no lavadouro; com as suas frágeis mãos lavavam toda a roupa da casa, e aproveitavam também para lavar a «roupa suja» das vizinhas. Ali nada ficava por dizer: eram “curtas” e “compridas”, “badalhocas”, “alcoviteiras” e “borrachas”! As crianças, que acompanhavam as suas mães, tudo ouviam e decoravam – eram as primeiras lições de um curso ao ar livre. Esses palavrões seriam depois atirados como setas aos rapazes mais velhos e até mesmo aos adultos!
     D. Sara não se servia do lavadouro público. Ia lavar a sua roupa à Quinta da Fonte da Vila, graças à amizade que mantinha com as proprietárias. Desse tempo ainda me lembro também dos rapazes das Carvalhiças – tinham fama de valentes e maus. Faziam equipas de futebol que jogavam com os da vila e raramente perdiam. Durante e após os jogos travavam-se alguns combates a murro e a pontapé; nisso também não se lhes pode negar a vitória. Um deles, o Zé da senhora Emília, bom a jogar e a bater, foi mais tarde pugilista em França – pobres dos adversários! Eu era um lingrinhas, mas apesar disso lá me ia metendo nos barulhos. Levava grandes coças, mas nunca desistia. Pior do que eu só o desgraçado do Zé do Mi. A avó, Tia Amália, quando o chamava era quase sempre para lhe bater! «Ó Zé! Anda cá, rapaz!» O Zé esquecia-se de fazer os recados, pois a paródia para ele estava sempre em primeiro lugar, e depois a velhota não perdoava. Ele, sabendo aquilo que o esperava, vestia um casaco enorme e aproximava-se da avó como o condenado se aproxima do carrasco! Gritava a altos berros, não sei se de dores se de puro fingimento – o Zé era capaz de tudo! Sentíamos um pelo outro uma amizade profunda, mas isso não impedia que brigássemos como dois inimigos declarados – a idade assim o exigia. Um dia fomos uns quantos chamados ao posto da Guarda Nacional Republicana. Tínhamos “roubado” lenha ao senhor António “Lareiro”, lá para os lados do rio.  Éramos quatro ou cinco: eu, os filhos da senhora Emília, e o Mário “Cuco”. O caso estava feio. Um dos guardas ameaçou-nos até com a casa da correção! Não era por causa da lenha, dizia; mas sim porque tinha aparecido uma pequena árvore derrubada. Nós, crianças de oito ou nove anos a derrubar árvores! Para susto, bastou. A fruta também nos trazia alguns dissabores; porém, nada, nem ninguém, conseguia dissuadir-nos de saborearmos, sem sermos convidados para tal, aqueles apetitosos manjares que a mãe-natureza nos oferecia. As uvas, as ameixas, os pêssegos, as maçãs de São João (tão vermelhinhas), as tangerinas, tinham em nós os seus mais ferverosos admiradores, mas comidas lá, pertinho da árvore! Até os filhos, ou netos, dos donos nos acompanhavam! «Fruta roubada é a mais saborosa», diziam. Agora já ninguém faz isso. Os “ladrões” de palmo e meio desapareceram – a fruta cai das árvores, talvez zangada com as crianças que não lhe ligam. Preferem os chocolates, os doces de pastelaria, as pastilhas elásticas! Os costumes são outros. A emigração em massa veio alterar muitas coisas. Nós, terminada a instrução primária, tínhamos de aprender um ofício, deixar a brincadeira, contribuir para o sustento da casa. Seguir estudos não estava nos horizontes de quase ninguém. Quando o ano passado assisti a uma cena na esplanada do Terreiro fiquei horrorizado: três jovens, não teriam mais do que quinze, dezasseis anos de idade, consumiam champanhe, ou espumante; às tantas, já fartos de beber, deitavam a bebida uns aos outros, como costumam fazer os vencedores de provas automobilísticas! Que pagaram com dinheiro deles, pagaram, mas três jovens, talvez estudantes, a gastarem assim o dinheiro em bebidas caras, a estragar, enquanto seus pais fazem economias para lhes proporcionar um curso médio ou superior para que não tenham de trabalhar no “duro” como aconteceu com eles. Nós jogávamos com bolas de trapo; hoje jogam com bolas que custam algumas notas; nós bebíamos água ou vinho da região; eles bebem, sem vontade, bebidas de luxo. Os governantes voltam a falar em tempo de «vacas magras!» Esperemos que essa magreza seja relativa.


Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 969, de 1/9/1992.


Nota: infelizmente o Zé Migueis já nos deixou. 







sexta-feira, 21 de agosto de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

Por Joaquim A. Rocha


... (continuação)

- Boa tarde mestre, e boas tardes também tio Anacleto. Então os meus sapatos estão prontos?
- Prontinhos e a brilhar. Quer que lhos embrulhe?
- Não é preciso, já os levo calçados e deixo cá estes; bota-lhe meias-solas, que me deixam entrar a humidade. Quando mos dás prontos?
- Para a semana; lá para quarta ou quinta-feira já os pode vir buscar.
- Põe na conta estes, que para a semana pago tudo, o patrão diz que me vai aumentar o salário, agora precisam de nós, vai toda a gente para o estrangeiro; que remédio, senão ninguém trabalhará para esses senhores. Bem nos exploraram durante estes anos todos, agora somos nós que mandamos, ainda não, mas já não falta muito, iam-nos comendo a carne e depois botavam-nos os ossos fora, aos cães, mas agora começamos a estar na mó de cima. 
- Ó tio Guilherme, estava a dizer aqui ao tio Anacleto que talvez vá para França, não me está a agradar a ideia de ir para o quartel, aquilo segundo dizem é tramado, passa-se fome de cão e um tipo anda de canga no pescoço, como os bois, todos mandam no desgraçado que lhes cai nas mãos. O pior é o raio do dinheiro, está difícil de arranjar.
- Pede ao meu patrão, esse deve ter algum, mas é um forreta, um somítico, um avaro judeu, não dá uma esmola a um pobre. Ainda outro dia foi lá o Orlando, também quer dar o salto, e saiu de lá com as mãos a abanar. Depois lamenta-se: - «gostaria tanto de ajudar esta gente, vão ter de ir para a guerra, mas não tenho dinheiro, o pouco que vou ajuntando é para a minha velhice, um homem depois não pode trabalhar, não tem nenhuma pensão, tem de se valer do que ajuntou; que vão pedir ali ao Atílio, esse sim farta-se de ganhar dinheiro com o contrabando, agora anda no negócio do café e dos relógios, esse é que o ganha, mas não se descose, vive como um pedinte, o miserável, podia ajudar os rapazes que querem emigrar, eles depois pagavam-lhe, até com juros, mas está-se nas tintas, o que ele quer é que não o chateiem
- Se não emprestou dinheiro ao Orlando muito menos o emprestará a mim, que eu a ele não lhe sou nada, o outro ainda é primo afastado, o maroto do senhor Atílio é que o tem, mas esse é como o seu patrão diz – só vê o próprio umbigo. 

                                                                     // (continua)...

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

OS NOVOS LUSÍADAS

Por Joaquim A. Rocha




13

Não se apague em nós a má memória
Dos reis guerreiros, pequenos Cipiões,
Uns buscando a terra e outros glória,
Afonsos, Sanchos, Pedros, Sebastiões.
Penetrando na senda assaz ilusória
De um mundo vazio, já sem sensações;
Dando à terra as costas, o mar olhando,
Miríade de frágeis naus o mar sulcando.

14

Não se esqueçam os Filipes espanhóis,
Que esta terra livre tornaram sua.
Vã presença, ruins recordações,
Tempo onde a dor pátria flutua;
Sonhos de liberdade, aspirações,
Tempos em que o medroso não recua.
Fogo que arde no nobre templo erguido
Em honra de um país nunca esquecido. 

rei Filipe

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

LINA - Filha de Pã

romance

Por Joaquim A. Rocha




AVISO



     Hoje era o dia de editar um texto sobre um crime que ocorrera numa das freguesias de Melgaço. Lembrei-me do crime (ou crimes) da "Palina" (Laurinda Alves - 1917-2004), mas devido à sua extensão e à sua complexidade resolvi em seu lugar publicar o romance, inspirado nesse estranho crime. Não é a realidade, mas dá uma ideia do que de facto aconteceu. 

Prefácio


     O acto de escrever é a aplicação de uma fórmula cultural (onde entra uma combinação de elementos linguísticos e simbólicos), a um determinado complexo humano e natural, tendo em vista a obtenção de um resultado social, que se há-de corporizar num objecto, neste caso, o livro, que é o suporte de uma obra literária. Este produto do labor intelectual do autor, para além da sua dimensão e natureza física, isto é, para lá da sua estrutura gráfica e textual, apreensível pelos sentidos, também é constituído por um corpo imaterial e incorpóreo, onde reside o sentido da mensagem, a qual apenas pode ser fruída pela mente e pelo espírito do leitor. O acto de ler é, assim, um gesto e uma atitude que permitem ao leitor experienciar sensações diversas, e é uma operação mental que lhe permite aceder ao universo moral do escritor, e com ele partilhar valores, ideias e emoções.
     O leitor de «Lina – a filha de Pã», posto perante a história romanesca, irá confrontar-se com personagens, locais e acontecimentos que, embora fictícios e não verdadeiros, replicam uma realidade parecida ou semelhante com a sua experiência de vida. Esta imitação da realidade proporcionará ao leitor momentos de identificação ou de distanciamento com os actos ou as ideias dos diversos intervenientes no romance. Assim, todo um passado imaginado torna-se presente, para ser analisado, segundo as perspectivas do escritor, que acaba sempre, mesmo que não o queira, por enriquecê-lo com o contributo da sua sensibilidade e cultura. A realidade, nascida da imaginação e da fantasia, conforme o próprio autor avisa na apresentação da obra, sofre, então, o tratamento da arte literária, a qual fornece ao escritor numerosas técnicas de escrita, de molde a que o leitor implique também a sua mundividência, enquanto ser social, na história que lhe é narrada. De um modo silencioso e calmo o livro transmigra então do escritor para o leitor.
     Na busca desse desígnio, Joaquim A. Rocha serve-se da história de vida de uma mulher de Melcarte para construir um fresco da sociedade melcartense, desde 1920 até finais da década de setenta do século passado. As condições de vida do povo são assim sujeitas a um levantamento de carácter histórico, para efeitos de enquadramento da acção e para que o leitor possa viajar no espaço e no tempo. Daí a razão por que nos primeiros capítulos podemos surpreender ainda personagens com candeeiros a petróleo, médicos a cavalo, povo analfabeto, pobreza generalizada, emigração, contrabando, «caminhos cheios de lama e pedregulhos», e tantos outros fenómenos sociais próprios da comunidade que constitui o cenário principal da obra em apreço.
     Mas o romance de Joaquim A. Rocha não deixa também de fazer um paralelo com o todo geográfico de que faz parte, com Portugal, com a Europa e com o mundo, pois semelhante conspecto sociológico ajuda a compreender a natureza dos problemas vividos por cada uma das personagens, pois o meio molda o carácter de cada pessoa, incluindo o do autor. Melcarte é em «Lina – filha de Pã» uma terra abandonada, sem ligações rápidas, sem desenvolvimento, sem esperança, sem futuro. Ao caracterizar o Portugal das primeiras décadas do século XX, e já com Salazar no poder, o narrador coloca o então jovem ditador a vociferar às portas da vila: «Isto é o fim do mundo! Está tudo velho, tudo a cair… Não me convidem para vir cá mais
     É nesta terra, esquecida pelo poder, em que num só edifício funcionava «o Tribunal, a Câmara, as Conservatórias, as Finanças, toda a burocracia do concelho», cercada por montes, rios e fronteiras, parada no tempo, que uma criatura nasce para lançar a desordem num quadro sociomoral muito estratificado e rígido, o mesmo é dizer, num lugar demasiadamente estreito para a existência do subversivo ou do anárquico. Esta criatura, que é a única personagem principal do romance, tinha vindo ao mundo «sob o signo da violência celestial», só porque no momento do parto «trovões, relâmpagos, faíscas, iluminavam o céu e assustavam todas as criaturas daquela aldeia entre a serra e o vale.»        
     O mote estava dado para a caracterização de uma personagem que nascia com a herança de uma misteriosa predestinação, sina que ela própria admitia, quando dizia às colegas de escola: «Sabem, eu tenho poderes ocultos;…» Esta jovem rapariga, pobre e semi-analfabeta, posta a servir em casa alheia, como quase todas as da sua idade, rapidamente caminha para a sua perdição, ao envolver-se num amor clandestino e proibido. Ainda que dominada pelo cinismo adulto, de gente de outra condição e feitio, rapidamente troca a inocência e a ingenuidade juvenis pelo frio calculismo da mulher enganada, que se entrega ao mais grosseiro materialismo. Vai assestando golpes de modo certeiro e impiedoso, até ao momento em que tem de travar meças com a justiça. Devido à sua força e espírito indomáveis, só ao fim de muitos trabalhos é que é presa, julgada e condenada a pena de prisão, em Lisboa.
     Inicia-se, então, o ciclo da regeneração, acabando a personagem por reelaborar uma nova ordem moral, com a ajuda de um padre católico, voluntário da área da reinserção social. Nos seus diálogos com o sacerdote, eivados de escatologia cristã, ela própria revelava que queria reencontrar-se, queria saber quem era: «quero descobrir quem ousou servir-se de mim para exercer o mal sobre os meus semelhantes.» Tais reflexões permitem-lhe a descoberta de novas fontes de amor, e fazem-lhe nascer no peito o influxo do voluntariado, a ponto de se tornar auxiliar de tarefas na cadeia, preparando dessa forma o terreno para a reconciliação com a vida e o mundo. A filha, nascida de um amor ilegítimo, facilita essa transfiguração, que inclui também a reparação espiritual do homem responsável pela sua perdição. Lina, o Juiz (o seu primeiro e único amor), e Lisete, filha destes, depois de reconhecidos os erros e expiadas as culpas, redimem o passado e tornam a fundir-se no amor humano, a causa profunda da nossa existência.
     Cabe ao leitor fazer os seus próprios julgamentos sobre a conduta das diversas personagens, desde a principal, que talvez não seja inteiramente responsável pelos desmandos, pois foi «nascida das trevas», supostamente dotada de poderes sobrenaturais, dados por Pã (deus dos bosques), e também abusada por um adulto; e cabe também ao leitor saber se os ludibriados por ela não mereceram o engano, pois não só se deixam lograr, como morderam o isco do desejo como peixes esfomeados. O castigo chegou para todos, a remissão de alguns foi rápida, a de outros foi lenta e dolorosa, e só terminou na velhice, no caso do sedutor, e na adultidade, no caso da seduzida. Só então veio a pacificação, e todos os problemas acabaram resolvidos.
     A personagem principal regressou ao ventre da terra, indo a repousar no cemitério de Dernepa, sua terra, aldeia natal, onde mandou colocar uma estranha lápide. Voltou às trevas, mas, em vez de trovoada, da sepultura «se exalava um odor suave, apaziguador, e se ouvia uma música celestial…», para citar as palavras finais do romance.
     A obra de Joaquim A. Rocha, para além de uma intriga bem urdida, que acaba de ser resumida em abstracto, e para lá do fundo histórico, geográfico e sociológico, também já referido, coloca questões de natureza ética, à luz dos padrões que tiveram força de lei até finais do século passado, à medida que os desvios à moral vigente vão ocorrendo. O autor perfila-se contra a subversão dos valores que sustentam o edifício cultural e moral da sociedade, como a beleza, a justiça, a religião, o arrependimento, o perdão, o amor… e não hesita em verbalizar judicaturas do tipo «Leitor: a beleza consegue milagres.»                                      
     Sendo assim, parece que mais uma vez se cumpre a máxima popular, que diz que depois da tempestade vem a bonança. Em «Lina – filha de Pã» o mundo sobressaltou-se, mas depois de exauridas as energias que o ameaçaram, regressou de novo ao curso do seu sereno trânsito.

Fernando Pinheiro, escritor.

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LINA – Filha de Pã


     Há muitos anos (mais de trinta) que eu venho escrevendo sobre Melgaço: “Dicionário Enciclopédico”, “Gentes de Melgaço”, além de vários artigos, uns de índole jornalístico, outros de caráter científico, poemas, pequenas peças de teatro… O que ainda não tinha experimentado dar a ler ao público melgacense (e não só) fora o romance. Já tinha escrito dois: “A Minha Guerra na Guiné-Bissau”, cujo título mudei para “Entre Mortos e Feridos”, e “Lembranças Amargas”, recordações da infância e adolescência. Tendo ainda na minha memória resquícios de acontecimentos antigos eis-me a reuni-los, a reinventá-los, e então surge um pequeno romance, ao qual resolvi atribuir-lhe o título de LINA- Filha de Pã. Ponderei imenso sobre o título a dar ao livro e por fim fixei-me neste, pois adequa-se ao texto. Vejamos: Lina é o nome da personagem principal – no início rebelde, velhaca, má, provocadora, fazendo mal aos outros sem medo das represálias, sem qualquer remorso; mais tarde arrepende-se do mal que provocara e altera completamente a sua visão do mundo e das coisas, renasce para a vida, procura desesperadamente fazer o bem. Quanto à segunda parte do título – filha de Pã – está ligada à mitologia grega. Pã era um deus feio e selvagem: «mal feito e peludo, tinha chifres, barba, cauda e pés de cabra.» Era pastor, guardava gado, cuidava das ovelhas, das cabras e até de abelhas! Andava sempre atrás das ninfas, mas estas fugiam-lhe por causa da sua fealdade. Apesar desses defeitos, Pã era um músico de grande talento, e os sons da sua flauta a todos encantava. Outras vezes dava gritos tremendos, os quais assustavam aqueles que se aproximavam dele. Segundo o autor, e adentro do conceito romanesco, uma criatura humana (embora nasça numa família normal), que se torna semi-selvagem, arisca, indomável, bravia, só pode ser filha de um deus como Pã. Daí ter surgido um título tão estranho.
     Quero prevenir os futuros leitores da obra, que não está no espírito do autor ofender a memória de quem quer que seja, pedir-lhes humildemente que não façam levianas comparações, não extravasem para além das fronteiras ficcionais, pois poder-se-á correr o risco de misturar o que não é, por princípio, misturável. A realidade por vezes é bem mais cruel do que a ficção. O escritor aproveita-se, inspira-se, molda até, acontecimentos que ocorreram ao longo dos séculos, uns mais significativos, outros nem tanto, mas a grande fábrica da trama romanesca reside, oculta-se, no cérebro, naquela zona em que tudo é imaginação e aventura. Homero (Odisseia, Ilíada), Camões (Os Lusíadas), e tantos outros, criaram verdadeiros monumentos literários, obras de arte, que vão sobrevivendo a guerras mundiais, catástrofes, etc. // Eu só desejo àqueles que lerem este despretensioso romance, que passem duas ou três horas de leitura agradável, que esqueçam, se possível, os tempos difíceis que os países atravessam, que apelem à sua fantasia e imaginação para os acompanhar nesta odisseia que é o percurso ziguezagueante das personagens.                     


     Espero sinceramente que um dia alguém escreva umas palavras críticas (favoráveis ou desfavoráveis) sobre o romance, pois a crítica construtiva, e fundamentada, ajuda a melhorar o futuro trabalho dos escritores. 
                                                                Joaquim Rocha

sábado, 15 de agosto de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha




As cartas de um castrejo

8.ª - «Senhor Redactor: esqueçamos todas as contrariedades a afrontar, temos vistas largas para todas as misérias que nos rodeiam e a alma disposta aos maiores sacrifícios; plagiando o imortal Camões: “braços às armas feito”, alma dedicada a tudo, tudo o que redunde em benefício da nossa pátria querida. Os jornais que juncam a nossa mesinha de trabalho (…), onde à luz dum candelabro de latão lemos com frenesi, noticiam o rompimento de relações de Portugal com os impérios centrais – Alemanha e Áustria. Nós, que fomos à inspecção e que a sorte nos livrou (…) e os nossos conterrâneos que por uma aversão inata ao serviço militar, estejam julgados refractários, todos os castrejos, enfim, aonde pulse um coração, nem por sombras lhes passa pela mente, agora, que a pátria tem de defender a sua autonomia, eximirem-se aos sacratíssimos deveres de, por ela, arriscarem o sangue e a vida – dando-os, se preciso for. A nossa caçadeira dorme, com gáudio dos javalis, que por aí enxameiam e nos fazem estragos consideráveis; (…) e as balas espreitam a ocasião de entrarem em cena; pois, para o resto, cá está a nossa energia, provada pela tenaz resistência que opomos a todas as inclemências dos homens e dos elementos. Temos a maior fé no Ministério constituído há dias, sob a presidência do Dr. António José de Almeida. (…). // Senhores: é verdadeiramente impossível e insustentável este estado de coisas. Nós, que passamos a vida neste meio inverneiro, só tarde, muito tarde, nos chegam as notícias; mas que de desmandos, e o que nos ferem a alma! No dia 15 passado, quando de Porto-Malhão, propriedade fronteiriça e pertencente aos senhores Domingos Gregório, Manuel Alves Canelas e António Afonso, de Portelinha, Castro Laboreiro, conduziam os seus gados para o povoado - gados que, registados cá tinham a certidão na aduana de São Gregório – a fim de certificados de lá e de cá, poderem transitar nos dois países; como a Guarda Fiscal daqui o não entendesse assim, apreendeu os gados daqueles senhores, que pagaram uma multa considerável. Desconhecemos, por completo, as leis aduaneiras – decerto por sermos uns lorpas, pouco curiosos; mas queríamos – e exigiremos quando a lei não seja um mito e as razões não sejam fictícias, e quando a Guarda Fiscal, em vez de lei busque pretextos frívolos e insofríveis, os seus superiores lhe apontem e imponham o caminho do deverque só é áspero e duro para quem não está habituado a cumpri-lo. Temos um avisinho a fazer ao comandante do posto fiscal desta freguesia: é que, doravante, não busque, pelo terror, subtrair-nos direitos; mas, sim, que consulte os seus superiores hierárquicos, sabedores e conscientes. Calamos, até ver. // No dia 17, as neves que em montanhas álgidas e alvas se aglomeravam por estas redondezas, começaram a derreter-se. Os riachos tornaram-se caudalosos; mas as nossas patrícias recomeçaram o seu tráfico diário. // No posto do registo civil desta freguesia há deslizes… É de justiça, demais a mais, para um castrejo “pur sang”, nado e criado aqui, que atenda com a máxima urbanidade e correcção – qualidades que, aliás, estão ligadas ao seu belo carácter, as reclamações de quem, a não lhe bastarem os incómodos morais, vai esbarrar com ápices inesperados e pouco justos. (…) // Outro caso grave e para que chamamos a esclarecidíssima atenção da digna autoridade administrativa: gado e cereais estão sujeitos a uma guia de trânsito, passada pela autoridade administrativa da freguesia – Regedor… Pois, se cada lugar tem um cabo de polícia, porque este não fará as funções de regedor, muito especialmente entre nós, onde os lugares estão muito distanciados? Esperamos de S. Ex.ª mais este melhoramento, tão justo como imprescindível para esta freguesia. // (…) O acaso fez-nos lembrar a afirmativa que fizemos aqui, de que Castro Laboreiro não exportava milho; e, assim, se não com precisão matemática – porque só sabemos as quatro operações aritméticas, e estas deficientemente, pois no-las ensinaram os picos, os cinzéis e as brocasora por terras de Castilha (…), ora nas linhas da Beira Alta (…), ao menos com boa vontade e com a certeza de convencermos ainda os mais incrédulos de que importamos milho só exclusivamente para o consumo da freguesia. Temos 875 fogos que, a cinco alqueires, média mensal, gastam 4.365 alqueires. Em dez meses (pois supomos que o centeio colhido dará para dois) precisamos de 43.650 alqueires de milho! Imaginem, os que nos pensam exportadores, que, durante um ano, precisam entrar por Portelinha 7.275 mulas, com um carregamento de seis alqueires cada uma; e, por dia, vinte, sem guardarem dias santos, nem recearem afrontar as neves e os medonhos temporais! Convenceram-se? Pois não são tantas as récuas de mulas que nos visitam carregadas do bom cereal. Castro Laboreiro, 23/3/1916.»                 

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

ENTRE MORTOS E FERIDOS 
(Dois anos de guerra na Guiné-Bissau)

Por Joaquim A. Rocha




... (continuação)

- Mais um observador. Foi lá, onde vira a luz do sol pela vez primeira o infante D. Henrique, que eu entendi verdadeiramente o que queria dizer prostituição. Certo dia, já quase noite, caminhava tranquilamente por uma rua esconsa quando uma esguia mão me puxa e voz roufenha, voz de bagaço e de tabaco, me pergunta: «Não queres vir comigo?!» Senti um calafrio a percorrer-me o corpo, tive receio, e afastei-me rapidamente, como esquilo na mata quando se apercebe do perigo iminente. A alguns metros de distância, ainda ouvi a criatura resmungar: «Chulo, paneleiro, cabrão!» Instintivamente, rebuscando na memória frases que ouvira na infância e na adolescência, quando alguém corria algum risco, e queria esconjurar o mal, pronunciei: «Vade retro, Satanás
  
     Henrique, até ali muito sério, soltou uma estridente gargalhada! Depois disse:

- Eu não acredito! Você a fugir duma rameira! Não acredito!
- Tu és um homem da capital, habituado, desde criança, a ver prostitutas, a observar o seu comportamento, a lidar com elas, provavelmente. Eu não; na minha terra não havia nada disso. É certo que havia mães solteiras, mas normalmente ficavam grávidas dos namorados, ou dos patrões, e até há quem diga que dos padres! Na cidade do Porto, e aqui em Lisboa, as mulheres de vida fácil vendem o corpo mediante um pagamento pré-estabelecido! Têm um preço! Não há amor, atracção física, nada! Nem sequer se conhecem! A minha mente não está preparada para perceber esta actividade humana.
- Você é um moralista!
- É verdade. Reconheço-me como tal. De meia tigela, mas um moralista. Um antiquado, um conservador. Para mim, se possível, só existiriam coisas boas no planeta. Amor, amizade, segurança, paz, verdade… O ódio e a guerra não teriam lugar no meu universo.
- Um sonhador, é o que você é, Cândido. A religião marcou-o imenso.
- É verdade, mas felizmente libertei-me.
- Restam resquícios…
- Não, acho que não. Parece que foi Marx que afirmou qualquer coisa como «a religião é o ópio do povo». A minha vida agora pauta-se por princípios filosóficos e racionais. Estou esperançado em que um dia, não muito longe, as pessoas se tornem melhores, compreendam que a felicidade cabe num grão de areia.
 
     Gerou-se um breve silêncio. Então Henrique interveio, a fim de salvar a situação:

- Desculpe Cândido. Por minha causa interrompeu a narrativa.
- Não faz mal. Não te lamentes. A reflexão também faz parte da vida. Estava a dizer… Sabes que meditei profundamente no caso e contei-o depois a um colega de camarata. Por pura coincidência, ele nascera e residia no Porto. Explicou-me tudo sobre a mais antiga “profissão” do mundo e também sobre a homossexualidade. Ele próprio, confessou-me, arranjava uns cobres “indo” com invertidos! Diz-me ele, com uma desfaçatez tremenda: «Eh pá! é preciso um gajo desenrascar-se!» «E não tens nojo»?! – indaguei. «Nojo?! Há maricas que usam perfume como as mulheres.» Não quis prolongar essa conversa escabrosa, nojenta... Já estou um bocado baralhado… Onde é que eu ia?
- Disse-me que os dois meses no CICA-1 estavam prestes a terminar.
- Pois é. A recruta. Findou. Sessenta dias terríveis, mesquinhos, para esquecer. A chamada especialidade viria a seguir, em Infantaria 6. Para trás ficava muito sofrimento, mil vexames, um cerimonioso juramento de bandeira, cuja fórmula resumiam assim, por reinação, alguns recrutas: «juro e jurarei que ao pré e ao rancho jamais faltarei».
     Contudo, não foi tudo mau: o nosso instrutor de condução era uma boa pessoa. Soldado, como nós, estava no quartel há pouco mais de um ano. Como tinha a carta de condução de pesados e ligeiros, e o exército precisava de instrutores, por ali ficou. Embora tivesse algum poder sobre nós, os instruendos, não o exercia ditatorialmente; era de opinião de que nem todos têm jeito para conduzir um carro, sobretudo esses monstros pré-históricos que o exército teimava em utilizar. Quantas vezes ficavam pelo caminho. O mecânico militar tentava dar-lhes conserto, mas, coitados, a sua vida útil tinha terminado. Sentíamos imenso respeito por ele, e muita estima. Tirámos algumas fotografias juntos, que eu guardo com carinho.       
- Ao longo da vida vão-se encontrando pessoas com bom coração.
- É verdade. Embora raras, mas aparecem. Conheces-me bem e sabes que eu não sou muito expansivo, mesmo assim tenho conseguido algumas amizades sólidas. Bem, a tarde vai caindo, vem a noite, a hora do jantar, já estou com o estômago a dar horas, amanhã é outro dia de trabalho e de estudo.
- No próximo domingo cá estaremos de novo - promete Henrique, com entusiasmo.
- Não faltarei por nada deste mundo. Só uma grande desgraça, um imprevisto, me impediria de comparecer.
- Então adeus!

 3.º Capítulo


INFANTARIA 6

     Uma semana passa depressa. É a juventude. Na velhice o tempo já custa a passar, apesar de se saber que a morte está próxima. Tudo isso está relacionado com a solidão e o sofrimento.
      Depois de um aperto de mão, de um sorriso conivente, ei-los sentados na mesa do Café. Cândido reinicia o relato:

- O quartel, enorme, situava-se na freguesia de Custóias, ou Senhora da Hora, já não me lembro, a geografia nunca foi o meu forte; sei que ficava no concelho de Matosinhos, a alguns quilómetros do Porto. Havia aí mais asseio do que no CICA-1: as camas bem-feitas (andava amiúde um cabo a fazer a inspecção – bastava um pormenor insignificante para ele mandar logo desfazer tudo e fazer de novo), com as fronhas bem esticadas; armas sempre limpas e oleadas; todo o equipamento sempre em ordem. Mas nas relações com os superiores, mesmo da classe mais baixa: cabos, furriéis, sargentos, notava-se uma maior distância. A bandalheira tinha acabado!
- E vocês, o que faziam durante o dia? – perguntou Henrique, somente para lembrar que estava ali.
- Metade do dia, entre as sete e as doze horas, destinava-se a exercícios físicos, a manejar armas, montar e desmontar, e fazer fogo; a outra metade, das treze às dezoito, empregava-se na condução.
- E as viaturas, estavam em bom estado?
- Eram velhas, pesadas, desprovidas de conforto, com assentos mostrando as grossas molas, a cheirarem a óleo queimado; deixavam, por vezes, ficar mal o nosso monitor. Eram autênticas carroças! Quedavam avariadas nos sítios mais díspares, à espera que o mecânico aparecesse para reparar a avaria, quando tinha conserto!
- Como é que o exército podia preparar bons condutores com viaturas tão velhas e ruins?! – empertiga-se Henrique, num gesto de revolta.
- Eles finalmente compreenderam isso. No estio de 1965 o governo adquiriu à França, ou à Alemanha, não sei bem, para as Forças Armadas, alguns carros novos. Faço ideia o que deve ter custado ao Salazar! Forreta como era, esse dinheiro deve-o ter chorado o resto da vida.
- A partir daí, carrinho novo em folha…
- Estás enganado! Eram poucos, não dava para abastecer todos os quartéis do país. A nós só calhou um pesado e um jipe. Tivemos que continuar com os trambolhos.
     Mas continuando… Sargentos e oficiais extremavam-se em antipatias. Consideravam, assim penso, o pobre soldado, uma massa disforme, não pensante, com cérebros do tamanho de uma pulga. Tratavam-no bem pior do que se trata o camelo no deserto: montando-o a seu bel-prazer, sem sequer para ele olhar – no entanto, não podiam dispensá-lo! Embora fôssemos a razão de ser da sua profissão, jamais perdiam uma oportunidade para humilhá-lo, ao zé-ninguém, calcá-lo aos pés, espezinhá-lo, para lhe mostrar que ali, no quartel, ele, soldado, igual ao sujo chão, não riscava nada, era uma formiga à beira de um elefante! Mina, de onde extraíam toda a sua riqueza, faziam tudo para ignorá-lo; não o conseguindo, exigiam-lhe que vergasse a cerviz!
- Você ficou traumatizado – sentenciou Henrique.
- Não era para menos, meu amigo. O pobre do magala vivia o seu dia a dia amedrontado, inseguro. E não se podia queixar a ninguém! Se se queixasse, fosse do que fosse, ai dele: seria imediatamente trucidado, atirado à lúgubre masmorra, às leoas famintas, onde permaneceria dias infindos, até ser devorado, ou transformado em mera serapilheira. 
- Não havia pelo menos um oficial que estimasse os subordinados?
- Bem, um ou outro superior, tratava o pobre coitado com mais humanismo, com mais lisura – as excepções à regra. Porém, os seus iguais, não gostavam dessas “cortesias” e quase os odiavam por isso. Não perdoavam a sua “fraqueza”.  
     O sofrido tempo, como tudo na vida, passava. Depois de termos percorrido quase todas as estradas do norte e feito imenso fogo com a vetusta mauser na carreira de tiro de Espinho, provocando-me dores insuportáveis nos frágeis ombros, por pouco quebrando a omoplata…
- E não punha nada para se proteger? – pergunta com espanto o jovem Henrique
- Eu usava, como me tinham sugerido outros jovens, uma toalha por baixo da camisa, mas o diabólico instrutor deu por isso. Ministrou-me uma tareia monumental: pontapés e bofetadas mil! Nunca esquecerei esse dia. Ele berrava que nem um possesso: «quero ver se levas para a guerra a toalha, menino da mamã
- Não se trata assim um ser humano – lamenta Henrique, indignado com tamanha agressividade.
- Nós não éramos considerados seres humanos, mas sim máquinas de guerra, coisas execráveis, tratados pior, quem sabe, do que os presos na cadeia! Nos discursos dos governantes nós éramos os «Soldados de Portugal», com letra maiúscula; nos aquartelamentos éramos os cães raivosos, a escumalha, sacos de lixo!
- E os outros, como reagiram?   
- Ficaram indiferentes! Não era nada com eles. Continuaram a disparar para aqueles alvos, bonecos de madeira, parecidos connosco, os quais estavam a uma distância enorme, perto da praia. Eu fui dos piores em tiro ao alvo, salvo erro. Para disparar bem é necessário que o espírito esteja sossegado. Eu, na tropa, nunca estive bem.
- Você é anti-militarista.
- Podes crê-lo. Fui sempre, desde que nasci, praticamente. Nunca gostei de gente que dá ordens por tudo e por nada, de domadores de cérebros, de parasitas que vivem, a bem dizer, do orçamento. Nada produzem e muito gastam.
- E das polícias? O que pensa delas? – perguntou Henrique com alguma expectativa.
- É diferente. A Polícia de Segurança Pública, a GNR, a Judiciária, e outras, são necessárias para combater o banditismo, a ladroeira, os assassinos, etc. Não tem comparação, embora eu, se tivesse poder, talvez fundisse a GNR (conotada com os militares) com a PSP. E outra coisa: criava (ou desenvolvia, caso já exista) uma polícia marítima, com equipamentos sofisticados: óptimos helicópteros, lanchas rápidas, etc., a fim de defender a nossa costa, tanto dos pescadores estrangeiros que roubam o nosso pescado, como dos traficantes de droga, armas, e prostituição, além de impedir a entrada de imigrantes clandestinos; criava também uma polícia aérea, para vigiar, do ar, todo o nosso território e prevenir incêndios. Ambas as polícias teriam um comando comum.
- E as Forças Armadas?! – interroga Henrique, incrédulo com aquilo que ouvia. 
- Acabava com elas, obviamente.       
- Contudo, elas derrubaram o regime que você tanto detestava – lembrou Henrique, quase num desafio.
- É verdade, e ainda bem que me falas nisso. Porém, não te esqueças que também foram elas que, em Maio de 1926, derrubaram a 1.ª República, dando assim azo a que surgisse o chamado Estado Novo. O “edifício” salazarista desmoronar-se-ia, mais tarde ou mais cedo, por si próprio. «Nada é eterno». Depois da morte do chefe, os seus herdeiros de regime já não se entendiam. Era uma questão de tempo. Exemplos desses existem em todo o lado. Repara: Marcelo Caetano não era bem visto pelos ultras e pelo director da PIDE – algo iria acontecer brevemente; a situação política teria que se definir. Fosse quem fosse que ganhasse o poder, algo teria de mudar. Por outro lado, os militares que fizeram o 25 de Abril de 1974 não estavam todos, como sabes, imbuídos do espírito revolucionário – muitos deles queriam era acabar com a guerra colonial.
- Por quê? Sendo militares, deviam gostar da guerra! – espicaça o jovem Henrique.
- De certo modo gostavam. Simplesmente já lá iam treze anos! Alguns desses militares de carreira tinham combatido em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Estavam cansados, fartos desses conflitos. E outra coisa: aquela guerra não era clássica, não prestigiava quem nela combatia. Os soldados da FRELIMO, por exemplo, andavam mal vestidos e alguns deles descalços! Se não fossem ajudados por vários governos, morriam à fome. Um oficial desse exército, em termos de eficácia, não valia um soldado americano. Os combatentes de Angola não se entendiam entre si! O MPLA tanto odiava o exército português como o da UNITA!
     O pequenino Napoleão Bonaparte granjeou prestígio porque venceu algumas batalhas a generais famosos; não é o mesmo que ganhar a maltrapilhos! Além disso, a África não é para brincadeiras, é perigosíssima: o clima, as febres... E há outra coisa: o governo, como estavam a faltar oficiais de carreira: alferes, tenentes e capitães, toca a promover milicianos a esses postos, sem terem passado pela Academia Militar! Eu conheci um alferes que tinha apenas o 3.º ou 4.º ano do liceu! Fora o melhor aluno no curso de furriéis, um militarista ferrenho, cara de pau, e por isso passou para a escola de oficiais; se continuasse na tropa, não sei, logo seria promovido a tenente, e a seguir a capitão!              
- Com tão poucas habilitações literárias?!
- Estás a ver agora por que os militares de carreira derrubaram o regime? Não foi certamente pelos nossos lindos olhos, para implementar em Portugal o socialismo científico, ou uma democracia a sério. Os militares são conservadores, por natureza. Agem como os médicos, os juízes, etc. – tentam preservar a sua classe, aumentar os privilégios, o prestígio...   
- O Cândido é demolidor!
- Nem por isso! Sou justo, pelo menos tento sê-lo. Mas deixemos isso, esses assuntos são para os especialistas na matéria, eu sou apenas um empregado de escritório e um estudante do Curso Comercial. Mas sabes que em Infantaria Seis me aconteceram duas coisas que nunca mais esqueci. Uma desagradável e outra assim-assim. A primeira foi quando barrei o meu casqueiro com o doce de cereja que a minha mãe me mandara. Logo que dou uma dentada, parto um molar. A velhota não se apercebera e deixara lá dentro um caroço. O dente, pouco a pouco, foi apodrecendo, causou-me dores intensas, noites sem dormir.
- E por que não foi tratá-lo?
- Também eu queria. Mas aonde? Expus o caso ao enfermeiro e ele disse-me para ir aguentando, o exército não tinha médicos dentistas, e se os tinha não tratavam os dentes dos soldados.
- E os particulares?
- Para esses tinha que se marcar consulta, perder horas, e os preços eram proibitivos, não estavam ao alcance das nossas bolsas.
- Valia mais arrancá-lo.
- Foi o que eu fiz, mas em África, no Hospital Militar de Bissau. E aí já foram dois! Um contagiara o outro.
- Mais uma razão para odiar a tropa.
- Sim, mais uma razão a acrescer às outras. Mas deixa-me contar-te aquele episódio engraçado, mas ao mesmo tempo esclarecedor. Como estava perto do Porto, que eu já conhecia mais ou menos, na noite de São João, em Junho, não quis perder essa oportunidade, única talvez, de conhecer uma das maiores manifestações de alegria no país inteiro.
      Queria ver «in loco» essa famosíssima festa. Depois do jantar, uma feijoada de porco (só a cabeça e orelhas, porque a parte nobre ia toda para as messes), sigo, com mais alguns camaradas, em direcção ao centro da cidade nortenha. Percorríamos esse longo trajecto a pé! Não é que o dinheiro do ordenado não desse para chamarmos um táxi; ganhávamos três ou quatro escudos por mês, uma autêntica “fortuna”, simplesmente nós gostávamos de caminhar!       
- Estou a ver! Para fazerem a digestão da feijoada! – ironiza Henrique.
- O táxi custaria trinta ou quarenta escudos. Isso não lucrava eu em dez meses! Mas continuando… Pelo caminho íamos na galhofa, atirando piropos às sopeiras que apareciam às varandas dos prédios ou na rua, umas bonitas outras feias, enfim, divertíamo-nos à nossa maneira. A cidade invicta lembrava (de acordo com o que vira no cinema) Pequim, Nova Iorque, Londres, Tóquio… um mar de gente, o bulício, a barafunda. Em certas ruas quase já não se podia andar. Nem queria crer. Habituado a um meio calmo, aquilo mexia comigo, deixava-me intranquilo. Tantas luzes, e tamanha cacetada de alho-porro na cabeça, estavam a pôr-me tonto, completamente perturbado. Empurra daqui, empurra dali, graçola daqui, piadinha dacolá, vamos seguindo de rua em rua, de beco em beco, ouvindo música popular, gritos eufóricos, guinchos de crianças. Uma loucura. Às tantas já nem os meus colegas de quartel podia enxergar – encontrava-me sozinho no meio daquela multidão imensa!
     Os gracejos choviam de todo o lado, mas eu de cada vez que os ouvia achava menos piada. Se o São João era aquilo… não gostava! Fui andando, andando, perdido, e cheguei, sem eu saber como, às Fontainhas. Aí as coisas estavam, se possível, ainda mais movimentadas. O espaço físico era insuficiente, exíguo, para tanto folião. O cheiro a sardinhas assadas era insuportável. Eu sufocava. Disse para os meus botões: «depois do tão apregoado fogo-de-artifício pões-te imediatamente a caminho do colchão
     O espectáculo foi maravilhoso. Nunca tinha visto coisa tão bonita. Nas festas da minha terrinha também havia fogo de vista, mas à beira disto… Não me recordo quanto tempo durou – estaria ali o resto da noite a ver o céu em festa. Logo que a harmoniosa “trovoada” acabou, recomeçaram as cacetadas, as mil brincadeiras, a folia, a pândega. Eu, porém, não tinha feitio para colaborar nessas manifestações de alegria e espontaneidade. Era demasiado tímido e bicho-do-mato para isso. Tentei furar como um rato pelo meio da multidão em delírio, todos bem bebidos, vi-me gladiador no circo de Roma, Hércules lutando contra a hidra de Lerna, e depois de enorme esforço dou comigo na estrada a caminhar em direcção a Custóias.
     Aproveitei para fazer um chichi, já não esvaziava a bexiga há séculos! Como o tempo passou rapidamente! Quase cinco horas da manhã! Chego finalmente ao aquartelamento, cansado, extenuadíssimo, e peço à sentinela que me abra a porta de entrada. Recusou, alegando que não podia, só às seis da manhã. Até a essa hora teria de aguardar na rua. Não insisti. Não valeria a pena. O regulamento militar assim o determinava e eu tinha de me resignar. Quem era eu para impor a sua abertura? Se ainda fosse graduado, mas não, era apenas um simples soldado raso! Não insisti, também para não prejudicar o colega, caso ele acedesse ao pedido e fosse apanhado nessa falta. Uma hora passava depressa. Comecei a movimentar-me, sem destino, sereno e tranquilo, sem pressas, e eis que vejo um barracão. Tratava-se de um silo, uma espécie de armazém, cheio de palha. Fui até lá e estendi-me deleitosamente. Estava quase a adormecer quando ouço algo a mexer-se ali perto. Levanto-me ligeiramente e qual não é o meu espanto ao verificar que se tratava de ratazanas! «Que se lixe», resmunguei. Com o sono a dominar-me, não podia ser esquisito.
      Deitei-me novamente e adormeci profundamente. Corria o risco de dormir todo o dia. No entanto, por volta das seis da manhã, uma poderosa voz faz-se ouvir: «Quem está aí dentro?» Na mão trazia longa e temível forquilha. Ainda estremunhado, respondo: «sou eu, um soldado de Infantaria 6; assisti à festa de São João e como cheguei antes da alvorada ao quartel não me deixaram entrar
     O agricultor pareceu satisfeito e convencido com a minha resposta. Olhou fixamente para mim, com aqueles olhos de águia, que tudo vêem, e com uma certa complacência diz: «Está bem, está bem; agora vá-se embora
     Fiquei aliviado, como me tirassem do lombo um fardo de chumbo. Cheguei ao quartel ainda a tempo do pequeno-almoço e contei aos camaradas aquele estranho e hilariante episódio. Todos se riram a bom rir – até eu!
- Como é bom ter vinte anos! – diz Henrique, encantado com a história.
- Estes pequenos episódios são somente banalidades; servirão um dia mais tarde, quando estivermos aposentados, para contar aos netos. Eles provavelmente não acreditarão, tal como hoje já não acreditam nos contos de fadas e no pai natal. A televisão, sobretudo, mas também a entrada para a escola em tenra idade, afastando assim as crianças dos avós, mata os sonhos da infância. // (continua)...