domingo, 31 de janeiro de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

Por Joaquim A. Rocha



VII
   
     O amor e uma cabana são coisas do passado.


     Aos meus ouvidos chegaram rumores, zunzuns, de que a Bera dava troco ao Artur, recém-chegado de França; claro que os ciúmes, esse sentimento mesquinho e incontrolável, feroz, logo se manifestaram. Porém, ela, de momento, dissipará todas as minhas dúvidas. Ai as mulheres! São capazes de todos os sacrifícios, de todos os atos nobres, mas também são autoras de grandes perfídias! Aproximem-se:

- Bera, ouvi dizer que o filho da Teresa, que veio agora da França, te anda a arrastar a asa, é verdade?
- Esteve a falar comigo, esteve; disse-me que se quer casar, se eu conhecia uma rapariga que o quisesse, sabes que eles só têm um mês de férias, depois têm de se ir embora, eu disse-lhe que raparigas não faltam, é só ele querer, mais nada.
- Vê lá! Eu dentro de uns meses, como sabes, vou para o exército e botarei lá uns bons três anos; se não morrer na guerra das colónias, casaremos quando regressar; não quero perder-te. Nunca tive outra namorada, tu também só me tiveste a mim; não casamos ainda porque combinamos fazê-lo só depois de eu vir da tropa.
- Não estejas já com ciúmes, achas que te trocava por outro? É bem verdade que os emigrantes trazem francos, disse-me que tenciona comprar um terreno e começar a fazer uma casita, já tem um bom carro, e algum dinheiro no banco…, mas o dinheiro não é tudo, não se pode casar com alguém só por via dele, eu nunca faria isso, mas é verdade que há aí raparigas que não se importam, num mês metem a papelada e casam, depois vão com eles para França, coitadas, nunca tinham andado de «cú tremido», num carrinho bonito, nem sequer tinham ainda entrado num. É verdade que eu também não, mas não sou como elas; eu a ti não te trocava por nada deste mundo; dei-te já provas disso, e para mais agora que vais para a tropa, eu ainda tenho vergonha nesta cara.  
- Confio plenamente em ti; não imagino sequer o que seria a minha vida sabendo-te nos braços de outro, não sei se suportaria a dor, olha que só de pensar nisso fico doente, eu não fui para a França porque não arranjei os dez contos que o passador me pediu, ninguém mos emprestou, se não teria ido, se as coisas tivessem corrido de feição já poderíamos ser marido e mulher, mas não podia ir roubar, que eu sou honesto, prefiro ir cumprir com a minha obrigação, pode ser que tudo corra bem, há rapazes que nem vão fazer a guerra, e a maior parte dos que vão regressam; caramba, nem todos morrem, valha-nos essa certeza, alguns vêm sem braços e sem pernas, mutilados, coitados, esses ficam com a sua vida arruinada, nunca mais podem voltar a ser o que eram; fala-se que na Alemanha põem pernas e braços artificiais, mas não é a mesma coisa, preferia morrer a andar a arrastar o corpo pelas ruas, que Deus me perdoe a blasfémia e a arrogância.
- É preciso ter fé em Jesus e na Virgem, e olha que essa guerra pode acabar de um momento para o outro; as nossas forças armadas são bem mais fortes do que os terroristas e acabam com eles depressa, se calhar já nem será necessário ires lá, quem sabe!
- Também não me quero iludir, mas tudo é possível; por outro lado, e segundo dizem, nem todos os gentios estão contra nós, o governo afirma que a maior parte dos africanos são nossos irmãos e estão do nosso lado, esses, coitados, não querem a independência, esses querem ser portugueses. Pergunta ali ao João preto, o criado do Doutor Morais, que é natural de Angola, se ele não quer ser português, diz-te de pronto que é português do coração, ele já nem sequer sabe falar a língua dos seus irmãos de África, a língua dos indígenas.
- Nós devíamos ter realizado o casamento antes de tu ires embora para a tropa, eu agora ficava aqui com a tua mãe, apesar de ela não gostar muito de mim, coitada, já está caduca, e vai ficar sozinha, claro que virei aqui de vez em quando, mas não é a mesma coisa, se tivéssemos casado era diferente, era a nora dela, agora já é tarde, e tu também sempre disseste que só casavas comigo depois do regresso, é uma ideia fixa, até parece que não confias em mim.
- Lá estás tu com essas coisas, sabes bem que gosto de ti, nem sequer me passa pela cabeça gostar de outra, és o meu oásis neste triste deserto; desejo casar contigo, mas pode-me acontecer alguma coisa má quando for para a guerra, e não te quero deixar viúva.
- Se tu morreres, viúva fico eu; mesmo não sendo casada, tua esposa legítima! Cruzes, canhoto! Nem é bom falar nisso, mas se acontecesse eu não me queria mais casar, o diabo seja surdo e mudo.           
                   // continua...

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

OS NOVOS LUSÍADAS

Por Joaquim A. Rocha



23

Em mil e quinhentos sai do Restelo
A frota comandada por Cabral.
A bordo ia um neto de Perestrelo,
E outros, desta pátria genial.
Iam em busca de terras, dum selo,
Para a nobre causa de Portugal.
Descobriram, por acaso, o Brasil,
Rico de matas, ouro, rios mil.


24

Puseram-lhe o nome de Vera Cruz
Àquela imensa terra sem fim;
Ar puro, florestas, muita luz,
 Gente nua, com língua avessa ao latim.
Desconhecendo a morte de Jesus,
Ignorando todo o mal, o Caim.  
Amando somente a natureza,
A cor do sol, o céu, casta beleza.

// continua...

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

LINA, FILHA DE PÃ
romance

Por Joaquim A. Rocha



3.º Capítulo


     O leitor não pense que nessa altura, 1932,1933, havia uma grande sala de cinema na Vila, como as de Lisboa ou Porto. Não, não havia. O que acontece é que o senhor Alexandre Rodrigues – fotógrafo, taxista e aferidor de pesos – mais o senhor Amadeu Afonso – alfaiate e taxista – fizeram uma espécie de sociedade e, numa garagem, exibiam alguns filmes, sobretudo cómicos, da época do mudo. Alguns anos antes, no lugar do Couto, freguesia de Dernepa, existira também uma sala de cinema, cujo dono se chamava Cícero Meleiro. Foi este senhor o primeiro a exibir filmes em Melcarte.
     Uns anos depois surgiu uma Sala de Cinema na zona histórica, a que deram a designação de Cine Republicano, cujo proprietário se chamou António Alves Semedo. Devido à censura, e à moral vigente, não se podiam passar no ecrã filmes muito ousados, isso só aconteceu muitas décadas depois.

**

     Aquela conversa dos rapazes prolongou-se até à hora de comer. Os estômagos estavam vazios, um ratinho roía-lhes as entranhas, tinham comido de manhã cedo umas malgas de água-de-unto com pão de milho, conhecido por broa, mas onde é que isso parava, já fora há umas boas quatro horas. As amoras ainda não estavam maduras; se estivessem, fartar-se-iam, embora alguns rapazes já tivessem ido parar ao hospital por causa delas. Comiam-nas ainda quentes, não as lavavam, e depois era o demo! 

- Vamos embora; - aconselhou o Arnesto – já estou com uma larica dos diabos.
- Só pensas em comer! Trabalhar não é contigo – dispara o Lingrinhas, dando mais umas alfinetadas nos amigos.
- Vai à fava! – descarregou o outro. - Eu não como à tua custa.
- Olha que levas! – ameaça o Lingrinhas.

     Dali a pouco andavam os dois à porrada: ao soco, ao pontapé, trambolhão para aqui, trambolhão para ali, mas o Lingrinhas teve de desistir, porque só era forte na língua; o seu corpo franzino, os ossos do corpo quase a verem-se, sem quaisquer músculos que sobressaíssem, não lhe permitiam grandes pelejas.   
   Partiram, mas prometeram voltar no próximo domingo, admirar as pernas daquelas bonitas moças.

**

     O corpo da Lina dera um enorme salto. Com doze anos, e meia dúzia de meses, já com umas visíveis maminhas, apareceu-lhe aquilo que é exclusivo da condição feminina. Assustou-se e foi ter rapidamente com a mãe.

- Mãe, a minha roupa ficou suja de sangue! Estou doente, vou morrer.
- Não vais nada morrer, rapariga. Isso é próprio das mulheres. Eu tinha treze anos quando a menstruação me apareceu. Assustei-me imenso, andava no monte à lenha, não sabia o que havia de fazer. Corri para casa, como tu agora fizeste. A tua avó explicou-me tudo. A natureza dá-nos isto para podermos ter filhos.
- Ter filhos?!
- Sim, a partir de agora já podes ser mãe; mas ainda és muito nova, tens que comer muita côdea, muita batata e toucinho, muito caldo de farinha, para depois casares e teres uma família tua. Com esse corpo não aguentavas um parto, nem a criança conseguia ultrapassar as primeiras horas de vida. Lá para os vinte, lá para os vinte… Agora vai buscar água e lava-te. Muda também de roupa. Eu vou já ter contigo para te ensinar como deves fazer nestas ocasiões.

     A jovem ficou pensativa. Tinha que aguardar ainda sete anos para ter um homem. Era muito tempo. Já os contemplava de cima a baixo; quando algum ia libertar águas ficava atenta, imaginando coisas… Não, não iria esperar tanto tempo. A natureza dá, a criatura consome!
     Clara, vendo que a filha se estava a transformar numa mulherzinha, começou a ensinar-lhe a tratar da casa, a cozinhar, a remendar roupa, a fazer todos os dias a cama, com aquele colchão rijo, cheio de palha centeia, por vezes carregadinho de pulgas, mas já todos estavam habituados àqueles bichos nojentos – faziam parte da família, tal como as galinhas, os porcos, coelhos, cães, etc. O pior era os piolhos, que depositavam aquelas lêndeas no cabelo, não se suportando a comichão; se não se tratasse a tempo até se fazia sangue de tanto coçar!
     Passaram-se dois anos e tal. Um dia Clara chama a filha e diz-lhe:

- Lina, estás a bem dizer uma mulher, já sabes quase tratar duma casa, tens algum jeito para a cozinha, e por isso precisas de ganhar a tua vida. Aqui o teu futuro será igual ao meu: trabalho, mais trabalho, sempre trabalho, e proveito quase nenhum. Nada podemos poupar, porque o pouco que nós conseguimos, temos que o gastar no dia-a-dia – mais que houvera! Não podemos dizer que passamos fome, isso não, mas anos há que o São Miguel nos atraiçoa, e as necessidades são muitas. Temos imensos estômagos para alimentar, o teu pai morreu com a maldita tísica, veio bom do Sanatório, mas não teve juízo, más companhias, sempre a fumar e a beber, os médicos bem o avisaram, mas aquela cabeça não tinha juízo, não quis ouvir os conselhos, sempre borracho, a cair de bêbado, alvo de troça, foi morrendo aos poucos. Os teus avós estão a ficar velhos; pouco mais tempo eles irão permanecer neste vale de lágrimas. Eu e os teus tios vamos aguentando isto. Os teus irmãos andam na escola, vamos lá a ver se não fazem como tu, que nem sequer sabes assinar o teu nome, ficaste uma burrinha nas letras. Para o resto és tu fina, astuta, ninguém te leva a palma, espero que não faças nenhuma asneira, olha que elas pagam-se, e por vezes com juros! Também, para servires como criada, não te vai fazer falta nenhuma saberes ler e escrever – o que é preciso é que saibas fazer as coisas de casa e obedeças às ordens dos patrões.       
- Ó mãe, e se eles me tratarem mal, o que faço?
- Há bons e maus patrões; mas se tiveres sorte, e se Nossa Senhora, mãe de Cristo, te ajudar, hás-de encontrar uns bons senhores. Enquanto fores nova, e tiveres energia, não te há-de faltar uma casa para servir. Sê ajuizada, não te metas em intrigas, não vejas para além do que precisas e do que te permitem. Os homens de casa não são para ti: – «não olhes para o sol, pois ficarás cega», dizia a minha querida mãe. Quem muito quer, tudo perde, por isso sê humilde, razoável, deixa a ambição de lado. O teu homem há-de ser um rapaz do campo, como o teu pai, e não um “fidalgo” da cidade. Esses gostam pouco do labor e muito do conforto. Andam todos os dias vestidos com roupas domingueiras, os sapatos engraxados, os cabelos bem penteados. Desses foge, minha filha, não prestam para nada, vivem à custa do suor alheio, comportam-se como os parasitas das plantas e dos animais.
- Mas, minha mãe, se eu vou servir para uma casa da Vila não posso namorar com um rapaz da lavoura, não acha?

- Nisso tens razão, mas podes vir a casar com um guarda-fiscal ou um guarda-republicano, ou até com um empregado do comércio, ou mesmo da Câmara. Esses, quase todos nasceram no campo, e depois saíram dele, e sabem muito bem o que a vida custa. Também te calhava um artista, um sapateiro, ou alfaiate, mas esses gostam das meninas da Vila. 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



Cartas de Castro Laboreiro


13.ª - «Senhor Redactor: o denunciante, aos nossos olhos, é quase um ladrão, porque abusa dos segredos confiados, porque os aproveita, como desforra ou como defesa, porque é um mau carácter, enfim, é indigno dos nossos aplausos e muito menos das nossas simpatias. Desculpamos mais facilmente o ratoneiro que nos assalta a salgadeira e arca para matar a fome e a dos filhos, do que o denunciante dum segredo e muito mais quando a denúncia pode roubar o pão de uma família inteira. Mas também não podemos consentir, sem reparo, que empregados da Guarda Fiscal, abusando da sua posição (…), abdiquem de todo o respeito que devem às leis, como todo o cidadão, para, em proveito próprio, se regalarem com o que só ao Estado pertence. E, colocada a questão neste plano, vamos ao caso: uma das testemunhas a depor na sindicância ao cabo Carvalho, comandante do posto fiscal desta freguesia, acusou-o de receber, em vez dos direitos correspondentes a cada touro ou touros contrabandeados, uma quota especial, por ele arbitrada, e o grave é que a mesma testemunha havia sido a que, com o referido cabo, prejudicara o Estado. Pronto: direitos e multa foram aplicados ao homem e pagou, assim, o mau acto praticado e denunciado. Porém, permita-nos o Ex.mo Chefe da Guarda Fiscal, neste concelho, estas breves considerações: o denunciante do cabo Carvalho é, sem dúvida, um analfabeto, desconhecendo, portanto, os mais rudimentares princípios dos deveres de todo o cidadão – e, entre eles, o de que é tão ladrão (senão mais) quem rouba ao Estado, como quem assalta numa encruzilhada. (…) É, sem dúvida, a carência de instrução que nos coloca nesta miséria, instrução pela qual, em cartas sucessivas havemos pugnado daqui a regalia que, talvez, nem daqui por um século fruirão nossos filhos, na extensão precisa, reclamada e altamente desejada. Nem por isso nós nos calaremos. Este homem, já devido à sua ignorância, já ao absoluto desconhecimento das leis fiscais, entrou num pacto com o cabo, sem saber o que fazia, nem as responsabilidades que lhe adviriam. Pagou-lhe o combinado, e foi forçado a pagar ainda direitos e multa. Concordamos com aquelas como consequência da sua denúncia; mas a multa deveria pagá-la o guarda prevaricador, por só ele ser responsável pela transgressão; por ser devido a ele que esta se deu; por, enfim, os encarregados dos postos da Guarda Fiscal que, como este, têm responsabilidades, nos parece deverem ser cônscios do cumprimento dos seus deveres. Desculpe-nos Sua Ex.ª estas referências, nascidas da alma, e esperamos, no espírito de rectidão que o caracteriza, que obstará, quanto possível, aos desmandos que semanalmente somos forçados a pôr em foco. // A visita pascal, que entre nós dura três dias, foi feita com a maior regularidade, devido à beleza dos mesmos dias. E… cá no Pedroso, ainda cheira a neve! Castro Laboreiro, 28/4/1916.»    

sábado, 23 de janeiro de 2016


ANEDOTAS

Por Joaquim A. Rocha



     Vitorino da Silva, mais conhecido por Tino de Rans, andava triste, pois as sondagens para a presidência da República não o favoreciam; entre os dez candidatos ele ficava nos últimos lugares, arruinando dessa maneira os seus sonhos. «Como Belém está tão longe», ruminava ele. Uns dias antes das eleições sentou-se na mesa de Café a fim de repensar a sua estratégia. Logo a seguir sentou-se um indivíduo a seu lado, comentando:

- As coisas não lhe estão a correr bem, senhor Tino. Deixe lá, outras oportunidades surgirão, o senhor ainda é muito novo.

- De facto, a minha mensagem não está a passar. Segundo as sondagens, terei dois por cento dos votos! É pouco, muito pouco, para quem deseja ser presidente.


- E se o senhor, logo a seguir às eleições, fundasse um partido?

- Não é má ideia, não senhor; mas já há tantos! Acha que teria alguma aceitação?

- Depende da dinâmica que lhe imprimir, das ideias, dos atos; o povo já está cansado dos velhos partidos – prometem muito, mas quando vão para o governo e para a assembleia não cumprem nenhuma das promessas; só sabem aumentar os impostos, tirar aos pobres para dar aos ricos. O seu partido seria do povo e para o povo, esse povo trabalhador, eternamente explorado, sugado até ao tutano.

- E que nome daria ao meu partido?

- Eu sugiro que se chame PPL.

- E isso o que quer dizer?

- Partido da Pedra Lascada.

- Assim se chamará; lascar pedra é a minha especialidade. 

- Prà frente! O país precisa de Tino.  

     Ambos saíram do estabelecimento, de braço dado, delineando o projeto, a maqueta do futuro partido, quiçá o vencedor das próximas eleições legislativas.   



quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

ENTRE MORTOS E FERIDOS 


7.º Capítulo

TOMAR

     «O tempo voa!», costumamos dizer. Assim é. Havia já meses que os dois amigos se encontravam. Henrique estava a ficar maravilhado com a história de Cândido. A realidade superava a imaginação. Numa dessas tardes pergunta-lhe:

- Qual foi a etapa seguinte? E de imediato, sem esperar pela resposta, com um longo sorriso nos lábios, comenta: - o meu amigo não parava!
    
     Cândido, pensando à velocidade da luz, responde-lhe:

- Mandaram-nos para Tomar. A cidade que me encantou. O seu vetusto castelo, mandado construir no século XII por Dom Gualdim, mestre dos Templários, é interessantíssimo. Também o seu convento, ou mosteiro, velho de séculos, nos seduz. Não nos é difícil imaginarmos os frades na sua labuta diária pelo sustento físico e espiritual; as freiras, moças casadoiras, empurradas pelas circunstâncias para aquela vida sem quaisquer perspectivas de futuro. Enfim, tempos e costumes que tiveram a sua época. 

     Nessa belíssima cidade histórica, situada no distrito de Santarém, com cerca de sete mil habitantes, já se encontrava a Companhia de Caçadores, à qual eu doravante pertenceria. O comandante, com o posto de tenente, tinha obtido a sua formação militar na Academia de Lisboa.
     Indivíduo ainda novo, vinte e cinco, vinte e seis anos de idade, rosto aparentemente duro, inexpressivo, mente insondável, um metro e setenta e cinco de altura, mais centímetro menos centímetro, setenta quilos de peso bem musculados, moreno, cabelo cortado à escovinha, olhos escuros, quase pretos, atlético, mentalizado para enfrentar a luta armada «contra os inimigos da pátria e do seu lídimo chefe
     O segundo comandante, homem esbelto, cabelo aos caracóis, olhos castanhos-claros, sorriso cínico, olhar esquivo e irónico, apesar de ser um alferes miliciano dava ares de mercenário, de profissional da guerra. Enquanto os outros oficiais tentavam disfarçar a pistola que traziam à cintura, ele exibia-a com gestos infantis e parolos, convencido talvez de que era o maior pistoleiro das planícies americanas, do tempo dos cow-boys.
- Era vaidoso, petulante!
- Muito! Usava fardas justas a fim de realçar o seu físico, que não aparentava, mesmo assim, ser muito musculoso. Era só aparência!
- As pessoas são diferentes umas das outras, não se esqueça. Espero que essa fanfarronice toda não se transformasse em opressão.
- Vim a saber mais tarde que esses exibicionismos andavam estreitamente ligados a dolorosos complexos, pois apenas podia apresentar como habilitações literárias o quinto ano dos liceus! Os outros alferes eram todos licenciados, tinham um curso superior.
- Então como chegou a segundo comandante da Companhia?! – pergunta, admirado, perplexo, Henrique.
- A Academia Militar (Amadora e Gomes Freire) não formava muitos oficiais. Eram cursos de vários anos e alguns cadetes, como eram designados, ou alunos, desistiam e outros não ficavam classificados. Assim, e devido à guerra colonial, foi necessário ao regime promover civis, depois de uma permanência curta nas Forças Armadas. Tratava-se de professores, empregados de escritório, bancários, etc., ligados quase todos à mocidade portuguesa e à legião, preparados por esses tais oficiais de carreira. Os melhores, embora sem curso superior, passavam de furriel a aspirante e logo depois eram promovidos a alferes. Aqueles que tivessem curso superior não passavam pela classe de sargentos. Desse modo, o regime conseguiu milhares de oficiais milicianos, alguns dos quais seguiram depois a carreira militar, combatendo nas várias frentes, atingindo patentes nunca antes imaginadas.
- E os profissionais, como reagiram?
- No princípio da guerra aceitaram a coisa, a incongruência, pois não havia quaisquer alternativas. Eles sabiam que eram poucos para fazer face ao que lhes era solicitado. Três frentes de batalha: Guiné-Bissau, Moçambique e Angola, não é brincadeira nenhuma. Mas depois, nos anos setenta, começaram a reagir. Alguns milicianos estavam a passar-lhes a perna. O 25 de Abril é, em parte, consequência dessa constatação.
- Então o 25 de Abril de 1974 não teve como objectivo principal derrubar o salazarismo?!
- Não, meu amigo. Serviu de pretexto, mas a causa principal tem a ver com aquilo que te disse. Os militares já não suportavam serem superados pelos civis.
- Então qual foi o papel dos partidos políticos na revolução? – pergunta Henrique, algo confuso.
- Os partidos: PCP e PS, além de outros menos importantes, estavam no estrangeiro. Em Portugal tinham alguns elementos, mas na clandestinidade. O governo, tanto da ditadura militar (1926-1932), como do Salazar (1933-1968), assim como o de Marcelo Caetano (1968-1974), não permitia quaisquer forças políticas contrárias ao regime designado por Estado Novo.
- Então os partidos tiveram pouco peso na revolução?
- Vejamos: o que aconteceu no 25 de Abril não é uma revolução, mas sim um golpe militar. Logo a seguir, e tendo em conta a adesão do povo, sobretudo os das principais cidades, e com a vinda de Mário Soares e Álvaro Cunhal do estrangeiro, deu-se início a uma revolução, que a pouco e pouco foi criando o regime democrático burguês – mais conhecido por «social-democracia».
- Estavam todos fartos da ditadura…
- Isso facilitou imenso a mudança. Mas voltando a Tomar. A minha Companhia estava, a bem dizer, quase completa. Apenas aguardava os inúmeros especialistas: enfermeiros, mecânicos, radiotelegrafistas, amanuenses, condutores, cozinheiros, vagomestre, etc.
- O que é propriamente uma Companhia? – quer saber Henrique, com o objectivo de compreender melhor a história que o amigo lhe vinha contando.
- Uma Companhia faz parte de um Batalhão (corpo de infantaria com cerca de seiscentos homens), e subdivide-se em quatro pelotões, à frente dos quais se encontra um oficial subalterno, geralmente com a patente de alferes. Os pelotões por sua vez ainda se desdobram em sectores, comandados por segundos-sargentos e por furriéis. Nós, os pseudo especialistas, digo pseudo porque mal preparados, íamos sendo, à medida que chegávamos, integrados nos respectivos pelotões e logo se começava, a partir daí, a conviver com todos aqueles que iriam ser os nossos camaradas de África durante a campanha, que normalmente durava dois longos anos, e companheiros provavelmente de hospital e de morgue. Seríamos cobardes ou heróis, mártires ou desertores – não sabíamos ainda. Os dados estavam lançados, mas não por nós, meros paus mandados, mas sim por eles, governantes e generais.
- Você lamenta-se, mas graças à tropa conheceu vários sítios – ironiza Henrique, para não estar calado.
- Preferia tê-los conhecido como turista; mas quanto a Tomar, agradou-me sobremaneira, apesar de ter um clima inóspito quando ali estive. A sua população dimanava simpatia e jamais hostilizou o soldado. Ainda cheguei, antes de partir para a Guiné, a fazer algumas guardas no mosteiro, e nem o capote nem a manta chegavam para me aquecer! O mercúrio do termómetro descia muitos graus abaixo de zero!
- Tudo passou; agora deve tentar recordar-se apenas das coisas boas – diz Henrique, numa tentativa para apaziguar o espírito amargurado do amigo.
- Sim, tudo passou… Tudo passa!... Mas não se esquece com facilidade. No entanto, também tenho lembranças positivas: o rio Nabão, que nessa altura, Dezembro de 1965, ainda não estava poluído, proporcionava-nos agradáveis momentos de ócio. As suas águas corriam límpidas, murmurando canções de embalar, algumas aves brincavam no seu leito, apesar de estarmos na época fria, tudo numa harmonia natural, sem artifícios.
- Você gosta muito da natureza.
- Desde criança que sinto essa atracção por ela. Tenho imensa pena quando vejo um curso de água ou uma floresta serem maltratados. Infelizmente o capitalismo cego e selvagem tudo destrói, alegando que é para o bem da humanidade! Um dia até eles próprios vão ver que estão errados.
- E Dezembro escoava-se…
- O dia da partida aproximava-se vertiginosamente. O tenente reuniu a Companhia e informou que o embarque seria no dia vinte de Janeiro. Antes disso teríamos direito a uma curta licença para podermos passar o natal e dizer adeus à família e aos amigos. Quantos de nós os tornariam a ver novamente?
- Já voltou a Tomar?
- Ainda lá regressámos, não todos, infelizmente, em finais de 1967 para entregar as execráveis e carcomidas fardas, e despedirmo-nos da vida militar, vestir a calça e o casaco, colocar ao pescoço a gravata domingueira, calçar sapatos, passar à disponibilidade, ou peluda, como então se costumava dizer.

                                                   
// (continua)...




segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO


Por Joaquim A. Rocha





Macróbios



ALVES, Maria Joaquina. Filha de Rosa Maria Alves, solteira. Neta materna de Luís Caetano Alves e de Maria José Gregório. Nasceu na Gave a 14 de Outubro de 1870 e foi batizada na igreja católica local nesse mesmo dia, mês e ano. Padrinhos: Manuel António Pereira, casado, rural, do lugar da Costa, e Maria Joaquina Alves, solteira, camponesa, do lugar da Sobreira. // Casou na igreja paroquial de Oliveira, Arcos de Valdevez, a 22/7/1943, com Manuel Joaquim de Araújo. // Enviuvou a 11/5/1949. // Faleceu na dita freguesia da Oliveira, Arcos de Valdevez, a 26/3/1978, com 107 anos de idade. // Foi sepultada no cemitério da dita freguesia.

ALVES, Rosa. Filha de Manuel Joaquim Alves, natural da Gave, e de Carolina Rosa Alves, natural de Parada do Monte, lavradores, residentes no lugar da Baldosa. Neta paterna de Manuel António Alves e de Ana Pires; neta materna de Maria Alves. Nasceu na Gave a 16/8/1896 e no dia seguinte foi batizada na igreja paroquial. Padrinhos: Manuel José Domingues e Maria Afonso, camponeses. // Casou na igreja da Gave a 3/4/1948 com António Luís Esteves, natural de Parada do Monte. // O seu marido morreu na freguesia de Parada do Monte a 14/9/1978. // Ela faleceu na freguesia da Gave a 25/1/1994, com 97 anos de idade


DOMINGUES, Rosa. Filha de José Domingues e de Delfina Pereira, lavradores, residentes no lugar dos Coelhos. Neta paterna de Francisco Manuel Domingues e de Maria José Afonso; neta materna de Rosa Pereira. Nasceu na Gave a 20/3/1911 e foi batizada na igreja paroquial a 22 desse mês e ano. Padrinhos: Manuel Alves e sua mulher Zerofina Esteves, camponeses. // Casou na freguesia da Vila, catolicamente, a 19/11/1992, com Salvador Rodrigues. // Enviuvou a 5/1/2006. // Faleceu na freguesia da Vila, SMP, a 19/1/2011, com cerca de cem anos de idade

sábado, 16 de janeiro de 2016

SONETOS

Por Joaquim A. Rocha


desenho de Rui Nunes

AUSÊNCIA




Quando me dirijo a ti, titubeio,
Não sei se ficarás triste ou alegre,
Se entrarás no meu sombrio casebre,
Fundida no sonho em que me enleio.

Sei bem que não sou bonito nem feio,
Nem consigo que outrem a mim se agregue;
Nem monge que somente a mim pregue,
Ou alma que colha o que eu semeio.

Sou corpo que se arrasta em lodaçais,
Semente que jamais germinará;
Terreno impróprio para semear.

Nasci só para te ver, nada mais…
Ares, minhas entranhas queimará
No fogo que se ateia no teu olhar.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

GENTES DE MELGAÇO
Alvaredo

Por Joaquim A. Rocha




     Em nossos dias fala-se muito de violência, mas ela, infelizmente, existe desde que surgiu no planeta o ser humano. Esta espécie, a que nós pertencemos, tornou-se ao longo dos séculos o terror das plantas e dos outros seres vivos. Mata-se por tudo e por nada, em nome de um deus, de uma qualquer ideologia, e até por prazer. Esta micro biografia que segue é disso o exemplo. A tentativa de homicídio não resultou, mas provavelmente este homem sofreu as consequências desse vil ataque até à sua morte.


ALVES, José Bento. Filho de José Bento Alves, natural de Várzea Travessa, Castro Laboreiro, emigrante em São Paulo, Brasil, e de Maria Rosa Fernandes, natural de Adofreire, Castro Laboreiro. Neto paterno de Manuel Alves e de Maria Esteves; neto materno de Manuel Fernandes e de Rosa Pires. Nasceu no lugar de Carrasqueira, freguesia de Alvaredo, a 22/12/1913. // A 24/11/1951, pelas 21 horas, no dito lugar da Carrasqueira, com uma machada, e por razões que se desconhecem, fraturaram-lhe o crâneo. // Era solteiro. // Ficou gravemente ferido, pelo que teve de ser conduzido a um hospital do Porto. Os médicos ficaram admirados por ele não ter morrido pelo caminho. Comentava o jornalista do “Notícias de Melgaço”: «Em Melgaço estão a amiudar casos destes e semelhantes, e a esta tendência agora manifestada é preciso pôr-lhe um travão…» // Faleceu a 2/8/1960.                                         

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

QUADRAS AO DEUS DARÁ

Por Joaquim A. Rocha


Quando eu era pequenino
Sonhava ser general;
São só sonhos de menino,
Não levem isso a mal.

*

Agora não sonho, nem sinto,
Sou pedra granitizada;
Até já quando eu minto,
É como não minta nada!

*

Faz greve o metropolitano
A Carris e a CP;
Todo mundo faz a greve,
E quem se lixa é o Zê.

sábado, 9 de janeiro de 2016

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



     Acabei de ler o livro com o título acima, da autoria do senhor padre Júlio Vaz, e só me ocorre dizer-vos uma coisa: fiquei emocionado. É surpreendente a quantidade de informação recolhida e, sobretudo, a sua qualidade. Poucas pessoas seriam capazes de tamanho empreendimento. Como melgacense sinto-me orgulhoso com mais esta obra acerca do nosso concelho. Ela vai ser, como já sugere o senhor Manuel Igrejas, o livro de cabeceira de todos nós. Apesar de eu ser um estudioso das coisas de Melgaço, neste livro foram inseridos dados que eu, francamente, desconhecia. Por exemplo: os capítulos XIII (Estela sepulcral arcaica do Alto Minho); XIV (Esconderijo morgeano da Carpinteira); XV (Breve notícia, até ao presente inédita, do achado de instrumentos de bronze no concelho de Melgaço). Relembrei também a excursão a Castro Laboreiro do grande sábio José Leite de Vasconcelos (1858-1941), e deliciei-me com o apontamento sobre o antigo Colégio da Barronda. Juro-vos que se antes tivesse lido o artigo «É necessário e urgente preparar o Alto Minho para um verdadeiro Turismo», publicado em A Voz de Melgaço de 1/3/1985, e agora transcrito para o livro (capítulo VI), não teria arriscado uma linha sequer sobre o assunto: aí está tudo dito, tudo sugerido!
     Um dos capítulos mais importantes é, sem dúvida, o primeiro: «o que o rio Minho não separou.» Aí se fala da geografia comum (… a Galiza e o Minho formam um todo, página 12); da língua comum: (… uma língua substancialmente uniforme, página 13); «… sem menosprezar a raça comum», página 13.
     Se eu fosse o autor deste livro talvez nele não incluísse os capítulos VIII (Actualização e a reacção do Arcebispo D. Francisco) e IX (Conflito eclesiástico de A Voz de Melgaço). Parecem-me deslocados, embora não ponha em causa o seu interesse histórico. Reservá-los-ia para um Livro de Memórias. Não tenho quaisquer dúvidas que o Padre Júlio (com tanto que tem para nos dizer) publicará, um dia, essa obra.
     Quanto ao capítulo X (Herói Melgacense) acho-o um pouco castrense, isto é, do foro militar. Os melgacenses, quanto a mim, são todos heróis: quer na guerra, quer na paz. Não é herói o emigrante que trabalha quarenta anos em França na construção civil para proporcionar à família o bem-estar? Não é herói o camponês que trabalha de sol a sol as suas terras? Não é herói o alfaiate, o barbeiro, o professor, o padre? A heroicidade não é exclusiva dos militares – que me perdoem Padre Júlio e Sargento Lobato.
     Talvez seja ousadia o que atrás escrevi, mas é isso que eu penso e seria hipocrisia da minha parte não o manifestar. Ambos, autor e eu, prezamos a liberdade de expressão e por ela estamos dispostos a bater-nos sempre. O amor à nossa terra e o respeito que devemos às pessoas superiores não pode impedir-nos de criticar (no bom sentido da palavra) tudo aquilo que saia da pena de um escritor ou do pincel de um pintor, ou seja, o que for que nós achemos que não está de acordo com a nossa maneira de ver o mundo. A crítica é saudável quando feita honestamente e sem segundas intenções. Também deverá ser feita por quem esteja minimamente dentro do assunto que está a criticar. Lá diz o ditado: «não vá o sapateiro além da sandália
     Penso que além da Gastronomia o autor deveria ter inserido um capítulo sobre a poesia popular do concelho, alguma já recolhida pelo mencionado Leite de Vasconcelos na sua monumental obra «Etnografia Portuguesa”, e aprofundar mais o tema sobre a emigração dos anos sessenta, que tanto tem alterado a fisionomia de Melgaço.
     O Padre Júlio surge-nos, depois desta obra, como um continuador dos historiadores melgacenses Dr. Augusto César Esteves e Padre Bernardo Pintor (o Professor Doutor José Marques ultrapassa o âmbito regionalista).
     Os jovens, sobretudo eles, precisam destes livros para que o seu orgulho pela «Terra-Mãe» aumente. A televisão, as discotecas, os vídeos e as cassetes em profusão, provocaram tal avalanche de distrações que os jovens têm dificuldade na escolha. As noites sossegadas em casa, os fins-de-semana pachorrentos, os passeios a pé, deram lugar às noitadas, ao aturdimento prolongado, ao encurtar da vida e seus prazeres simples. Melgaço é demasiado “pequeno e pobre” para muitos deles, que já visitaram as cidades ricas de França e Alemanha. Esquecem, ou talvez nunca tenham nisso meditado, que o Homem pode sentir-se espiritualmente bem em terras sem grandes atrações lúdicas. O contacto com a natureza, o convívio com as outras pessoas (nas cidades é cada vez mais difícil) dá-nos uma calma interior, um bem-estar tão profundo que compensa todas as “farras” loucas, onde a saúde e a bolsa saem delapidadas. O artificialismo criado pelos “fabricantes” da ilusão a qualquer preço pode levar ao divórcio do ser humano com as suas raízes mais profundas: a Terra, a Família…
     «Na Terra de Inês Negra” esse regresso ao simples é patente. A Casa (com letra maiúscula) dos pais é também a nossa Casa (é todo o concelho, as suas gentes, os seus costumes, as suas virtudes e os seus defeitos). Esta é a grande lição do Padre Júlio. Conhecendo as nossas origens, os altos e baixos da comunidade, permite-nos respeitá-la mais e mais. Ninguém pode amar aquilo que não conhece.
     A emigração é apenas um episódio da nossa história; quando ela terminar, e a fase descendente já começou, Melgaço retomará a sua verdadeira imagem e de Babel que é atualmente transformar-se-á em comunidade genuína. Não sou contra a emigração, ela é quase uma fatalidade, mas a dos anos sessenta provocou tal sangria na população, e tantas consequências no concelho, quer benéficas, quer nefastas, que pouco faltou para o descaraterizar completamente!
     A nossa terra, devido em parte à sua situação geográfica, tem estado praticamente isolada dos “grandes meios”; a cidade mais próxima, em termos de importância, é Braga, e Braga está longe, demasiado longe! As auto-estradas constroem-se até Valença (será que Portugal começa ali?!), as pontes do rio Minho não têm o nome Melgaço, apesar das promessas. Deveríamos perguntar aos ministros se os melgacenses têm a lepra ou qualquer outra doença contagiosa que os faz afastar deste belo recanto minhoto. De acordo com a minha opinião, a nossa “lepra” é o termos poucos votos para lhes dar, porque o dinheiro, esse, vai todo parar-lhes às mãos. Algo se tem feito, é certo, mas pouco para um concelho tão carecido como é o nosso. Eu não tenho dúvidas que se dos milhões «desbaratados» um pouco por este país fora alguns fossem aplicados em Melgaço, em projetos consistentes e duradouros, o concelho teria condições para alimentar muitas mais bocas, sem estar à espera das pensões de França ou da Alemanha, ou das remessas (por quanto tempo?) dos emigrantes.
     A capa do livro, da autoria de Manuel Félix Igrejas, é belíssima, mas de uma imprecisão (ou será que eu vi mal?) assustadora! Vejamos: não é verdade que o artista se inspirou no desenho de Duarte D’Armas (vide «VI Centenário da Tomada do Castelo de Melgaço», página 40), fidalgo da corte de D. Manuel I? Se assim foi, a capela que nela se vê não pode ser a da senhora da Pastoriza (a primeira missa que aí se cantou teve lugar a 17/8/1727 - «Melgaço e as Invasões Francesas», página 18). Que capela é aquela? Por outro lado, encontra-se a mesma na outra margem do rio, isto é, na Galiza! O rio Minho, se é esse rio que está representado na capa, era nessa altura ainda mais caudaloso do que agora. Situar a luta de Inês Negra com a Arrenegada na outra margem é, no mínimo, absurdo. A luta travou-se, embora se trate de uma lenda, junto às muralhas do castelo. Quanto a mim, o desenho de Duarte D’Armas não permite essa leitura. É certo que o artista tem a liberdade de executar, de criar, as suas obras de acordo com uma visão interior e desprezar aquilo que os olhos vêem no exterior; eu só “refilo” porque se trata de um livro de ensaios históricos – não estamos perante uma ficção. Trutas saltando à superfície do “rio”, assistindo admiradas à luta entre as duas mulheres, pode ser uma imagem surpreendente, mas é, também, uma imagem surrealista!
     O rio Minho pode não ter separado a língua, os sentimentos, os costumes, mas separou, isso todos sabem, os dois territórios: o português e o espanhol. O senhor Manuel Igrejas vai certamente corrigir-me, demonstrar a minha ignorância relatimente a esta minha leitura apressada; espero humildemente os seus esclarecimentos, pois um livro é um conjunto harmonioso e a capa faz parte integrante dele. Não quero pôr em causa o trabalho artístico, que considero extraordinário; quero apenas chamar a atenção para o desfasamento entre as figuras e o seu enquadramento histórico.
     Muito mais haveria a dizer deste livro. Desejo que muita gente o leia para depois falar. Desejo também que o senhor Padre Júlio continue a escrever sobre o seu e nosso Melgaço.

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 991, de 15/8 a 1/9/1993.


Resposta

Ao amigo Joaquim A. da Rocha


     Querido conterrâneo: só o facto de você se referir ao desenho que ilustra a capa do livro do senhor padre Júlio «Na Terra de Inês Negra», detalhadamente e com observações críticas, já me satisfaz. A maior parte das pessoas a quem o livro chegue às mãos não terão esse cuidado e muito menos se importarão em saber do autor. Pois bem, não obstante as inúmeras «imprecisões» que observou, agrada-me saber que se deteve analisando aquele meu trabalho. Só por isso, obrigado. Estaria tudo dito, uma vez que o amigo mesmo deu a resposta: «É certo que o artista tem a liberdade de executar, de criar, as suas obras de acordo com uma visão interior e desprezar aquilo que os olhos vêem no exterior…» mas, como também pede um esclarecimento de minha parte, aí vai: aquela composição artística é uma alegoria. Naquele simbolismo não existiu a intenção de retratar a realidade histórica e geográfica, apenas sugerir alguns dos temas do livro. Aquele rio representa todos os cursos de água da nossa terra ricos em peixes e não especificamente o rio Minho. Assim sendo, não demarca coisa alguma; toda a extensão representada é uma região ilimitada, como ilimitado é o mundo para os melgacenses. A capelinha que o amigo se esforçou em identificar representa todas as capelas que, graças a Deus, existem no nosso concelho. Aliás, é minha marca: quando em meus desenhos vir um castelo indefinido quer dizer Portugal; e uma capelinha num outeiro que dizer Melgaço. Sempre que se enquadre incluo esses dois temas nas minhas composições artísticas. O castelo, realmente, é a partir do desenho de Duarte D’Armas, mas, como disse, sem a preocupação de reprodução fiel. A disposição dos objetos no desenho obedecem tão-somente a um EQUILÍBRIO VISUAL, não a qualquer obrigatoriedade realista. Uma vez, tinha eu catorze anos, o Mário (Aldemar, creio que era esse o seu verdadeiro nome), irmão do Armando do Buraco, grande pesquisador e escritor, pediu-me para lhe fazer uma pintura do terreiro com o castelo ao fundo. Eu fiz a aguarela e ele gostou, porém, criticou-me severamente por reproduzir a Praça da República (terreiro) tal como era – despida e cheia de regos da chuva. Que eu devia ter feito um lindo jardim com árvores e outros adornos. Ante a minha perplexidade ainda infantil disse que ao artista é permitido o privilégio de alterar de acordo com seu gosto e visão, quando não se trate de documento. Foi a primeira das poucas lições de arte que tive na minha vida.
     Amigo Joaquim: espero que as minhas justificações o satisfaçam; sem pretender mudar o seu ponto de vista, desejo que entenda o meu. Aproveito a oportunidade para fazer-lhe uma observação e um pedido: o tratamento de senhor que me dispensa frustra o meu propósito de relacionamento fraternal entre todos os melgacenses. Não me reconheço com capacidade e condição para ser tratado cerimoniosamente; pelo fator idade, pior ainda, será até uma ofensa à minha pretensa juventude espiritual.
     Queira-me bem, amigo Joaquim. Continue sendo o observador atento e crítico isento de tudo que acontece naquele nosso torrão. Um grande abraço.

                                       Manuel Félix Igrejas


Publicado no jornal A Voz de Melgaço n.º 993, de 1/10/1993.