domingo, 31 de julho de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha


escritores melgacenses




Aníbal Rodrigues (Padre). Filho de Manuel António Rodrigues e de Teresa Teodósia Rodrigues. Nasceu no lugar de Mareco, freguesia de Castro Laboreiro, a 29 de Janeiro de 1919. Completou a quarta classe a 21 de Julho de 1933, ficando distinto. A seguir ingressou no Seminário da Conceição, Braga, onde se ordenou sacerdote a 8 de Julho de 1945. De 1945 a 1948 desempenhou o cargo de coadjutor do pároco de Castro Laboreiro. A 17 de Julho de 1948 toma posse como pároco de Castro Laboreiro, cargo que manteve até à sua morte, ocorrida a 10 de Março de 2003. Obras: «Ao Serviço da Igreja e de Castro Laboreiro». Em 1985, na revista A Candeia, publicou um artigo interessante sobre o pelourinho de Castro Laboreiro. Escreveu também sobre o castelo, os dólmenes, as pinturas rupestres, e as várias pontes que existem nessa freguesia da montanha, e até de culinária ele falou e escreveu! Aventurou-se também na poesia, mas penso que não chegou a editar qualquer livro de poemas      

 
- RODRIGUES, José Maria (Zé Serrano). Filho de Abílio Rodrigues e de Rosa Rodrigues. Neto paterno de Manuel Vitorino Rodrigues e de Maria Rosa Duque; neto materno de João Manuel Rodrigues e de Rosa Domingues. Nasceu na freguesia da Gave a 10/08/1930. // Em Maio de 1942, já com a 4.ª classe da instrução primária, decide preparar o exame de admissão ao Seminário de Braga, para o qual foi apoiado pelo padre Carlos Vaz, pároco de Rouças. Em 1944 ingressa no Seminário da Senhora da Conceição, onde estudou até 1948, 4.º ano; por razões pessoais ou familiares, desistiu. Foi ficando por Melgaço, mas entre 8/9/1951 e finais de Agosto de 1952 cumpriu o serviço militar obrigatório, com a patente de furriel miliciano de infantaria, em Tavira; dali passou para a escola prática de infantaria, em Mafra, especializando-se em rádiotelegrafia. Concluído esse curso, colocaram-no no batalhão de caçadores n.º 9. Depois da tropa regressa à sua terra natal, onde se mantém até 1957. No dia 27 de Fevereiro desse ano emigra para França. Nesse país trabalhou na construção civil até Setembro de 1984. Nesse mesmo ano fixa residência na sua freguesia de nascimento (ver «Padre Júlio apresenta Mário», páginas 289 e 290). // A partir do número 880, de 28/11/1948, torna-se colaborador do semanário Notícias de Melgaço; colaborou também, durante muitos anos, no jornal “A Voz de Melgaço”. // Após o regresso de França foi presidente da Junta de Freguesia da Gave pelo Partido Socialista. // Poeta popular. Reuniu alguns poemas, de índole popular, e editou um livro, com patrocínio da Câmara Municipal de Melgaço. Eis uma estrofe: «A broa da minha aldeia/tanto trabalho que dava!/Era o pão de cada dia/que raramente faltava!.../Até nas casas mais ricas/era o pão que sempre andava! // Faleceu a --/--/2---, século XXI.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
 
Por Joaquim A. Rocha
 
IX capítulo - continuação (ver 15/6/2016).
 
 
 

- Muito me ri à tua custa; eras um autêntico saloio! Pensavas que na cidade ninguém dormia, tinhas medo de pinchar dos carros elétricos em andamento, ficavas boquiaberto com tantas luzes, com tantos reclamos luminosos.

- E lembras-te daquela vez que penetrei na casa dos vizinhos da Susana?

- Já não me recordo bem, conta.

- Ainda na rua, toquei à campainha do terceiro andar quando devia ter tocado para o quarto; de cima abriram, deviam ser seis horas da tarde, e fui subindo as escadas, que nunca mais terminavam; logo que vi uma porta aberta entrei; sentei-me no banquinho que se encontrava na cozinha e esperei tranquilamente como era hábito. Às tantas começo a ver caras totalmente desconhecidas para mim. Então pensei: «olha que este não deve ser o apartamento onde reside a tua irmã!» Sem me denunciar, ergo-me sorrateiramente, saio porta fora, galgo mais uns degraus, e fui bater à porta do andar de cima – reconheci de imediato a pessoa que me veio abrir a porta.

- Eras mesmo um labrego! E tiveste sorte, pois aquelas pessoas na sua maioria eram hóspedes; se fosse uma família mandavam-te prender, pensando que eras um ladrão!

- Normalmente os irmãos mandam ir os outros para a cidade ou para o estrangeiro, mas tu a mim nunca me disseste para ir trabalhar perto de ti!                      

- Ainda pensei nisso, mas tu não tinhas corpo nem energia suficiente para aguentar aquela vida, borravas-te todo, não aguentavas uma semana, ias-te logo abaixo das canetas; aquele trabalho de carregar às costas cestos com quilos e quilos de mercadoria só para gajos fortes, possantes como bois, por outro lado tu estavas a aprender um ofício, embora não desse muito sempre ia dando para a comida, casa não pagavam e o bruxo sempre ia desembolsando alguns escudos.

- Não sabes que a mamã se zangou com o feiticeiro no ano seguinte à tua ida para Lisboa? Zangaram-se, mas depois ele começou a rondar a porta, o que ele procurava sabia eu, era velho, mas para isso não! A tua mãe pouco tempo lhe resistiu, fez logo as pazes, mas aí intervim eu, apanhei os dois na cama, eles pensavam que eu só aparecia à noite, que tinha ido ao rio, eu costumava ir todos os fins-de-semana à pesca, era o meu desporto favorito, além do futebol, levava um livro para ler, o que me fascinou mais foi o Don Quixote de la Mancha, fartava-me de rir, é uma obra extraordinária, muito bem escrita. Sabes que eu até falava com as águas que, lenta ou velozmente, corriam para o mar? Serviam-me de amigo e confidente. Nesse domingo de verão à tarde, e como já havia tempo desconfiava deles, não fui à pesca. Nesse dia resolvi andar ali por perto. A porta da casa estava trancada, era para eu não entrar caso aparecesse de surpresa, mas eu engendrei outro processo, outro método de entrar. Ágil como era, qual esquilo jovem, entrei pela varanda, peguei na machada, aquela que levava para o monte para cortar a lenha, e gritei-lhe: «saia imediatamente dessa cama, seu velho porco, e ponha-se na rua, se o vejo cá outra vez mato-o!» O filho da mãe viu que eu estava a falar a sério, a mamã chorava, não era certamente de vergonha, que essa já a tinha perdido há muito tempo, mas de raiva por ver que eu já estava crescidinho e jamais lhe aceitaria estas jogadas sujas, enquanto esteve amigada com ele era uma coisa, agora ele entrar na casa como se ela fosse uma prostituta, talvez pagando-lhe, isso não.

- E o bandido, como reagiu?

- O patife meteu o rabo entre as pernas, como fazem os cães cobardes, e nunca mais entrou na nossa casa, grande besta, tinha-lhe uma raiva, um pó, que nem para a cara lhe podia olhar.

- Pensava que te davas bem com ele!

- O somítico, quando eu fiz a quarta classe, em Julho de 1955, ofereceu-me um fato de macaco, de ganga, de cor azul, daqueles que usam os mecânicos nas suas oficinas, e umas alpercatas, para levar ao exame, parecia uma miniatura de operário, até os outros alunos se riram de mim, que vergonha, valia mais ter ido com a minha roupinha rasgada e o cinto e corda, era assim que eu sempre andava, e já ninguém se ria de mim.

- Depois ficaste sozinho com a mamã.

- Ficámos com alguma tenda e fomos pelos lugares do concelho tentar vendê-la. Muito calcorreámos: léguas e léguas de veredas, caminhos de cabras, por vezes tudo encharcado. Claro que foi um autêntico fiasco: a mamã embebedava-se e perdia a conta aos artigos que se vendiam, eu ia apontando, mas que queres, tinha pouco mais de onze anos de idade, sem experiência de vendas, ela era uma analfabeta pura, o velho é que sabia vender, até parece que nascera tendeiro o raio do homem. Passado uns meses já não tínhamos tenda nem dinheiro para pagar aos fornecedores, foi um autêntico caos, um desastre absoluto. A seguir fui aprender o ofício de sapateiro, engraxava sapatos nos dias de feira e aos domingos, dez tostões cada engraxadela, alguns ainda achavam caro! Ia ganhando para a bucha, a mamã continuou a percorrer as aldeias, agora sem tenda, conhecia muita gente, ajudava aqui e acolá, iam-lhe dando umas malgas, algum milho, uns pedaços de broa, feijão, umas chouriças, coisas que estavam muitas vezes já a estragar-se, que eles receavam comer, nós éramos o caixote do lixo, a cloaca; ela aproveitava tudo, eu não podia ingerir essas coisas, já tinha o estômago estragado, fartava-me de vomitar. Lembras-te quando estive internado no hospital?

- Lembro-me perfeitamente, foi quando viemos para a Vila, tinha eu quase nove anos, tu andavas muito enfezado, não comias nada, amarelinho, parecias tuberculoso, a tua mãe foi pedir ao médico para te internar no hospital da Santa Casa da Misericórdia, estiveste lá uns dias, depois fugiste, não sei porquê!

- Fugi porque não gostava de lá estar; parecia-me uma prisão, tu cá fora a brincar e eu lá preso, a comer sopa de galinha, sem sal, aquilo não prestava para nada, as enfermeiras é que eram simpáticas, sobretudo a Maria do Céu, nunca a esquecerei, era o meu anjo da guarda, tratava-me como se eu fosse o menino querido dela, tão bondosa, eu pinchei as grades, pronto, não gostava de lá estar, nem da comida, dormia junto com velhos, morreu lá um à minha beira, apanhei um susto dos demónios, nem queiras saber, nunca tinha visto um homem morrer, tinha os olhos esbugalhados, parecia um fantasma, muito branco e amarelo, meterem-me ali, com aqueles idosos doentes, aquele cheiro a remédios, eu vomitava, até desejava morrer, saltei aquele portão, aquelas setas de ferro apontadas ao céu, podia ter ficado ali espetado, coitado de mim, mas eu também não me importava, o que eu não queria era lá estar, queriam dar-me óleo de fígado de bacalhau, que nojo, ainda vomitava mais, saía-me da garganta um líquido verde, viscoso, aquilo vinha das tripas, porque eu não tinha no estômago nenhum alimento.

- Sofreste muito, eu na altura ainda te batia, estou cheio de remorsos.

- Escusas de estar, eras uma criança, só mais velho do que eu cerca de três anos, não compreendias o meu tormento, pensavas que eu fazia tudo aquilo por maldade.

- Depois a mamã, quando soube, andou à tua procura, tu não aparecias, ninguém sabia onde te meteras, levaras sumiço! Até se pensava que tinhas ido para o rio, que te afogaras… Pensaram-se imensas coisas. Eu, apesar de tudo, de seres refilão, de brigares com todos, de seres um rebelde, apesar disso, gostava de ti, mas claro, andavas atrás de mim, eu tinha os meus amigos, tu eras uma formiga à nossa beira, nós íamos à fruta, eu não queria que nos acompanhasses, devias andar com os da tua idade. Tu insistias e eu tinha que te bater, casquei-te bem, um dia até desmaiaste! Fiquei com medo, o soco fora muito forte, mas passado pouco tempo abriste os olhos, que alívio para mim.  // continua...

terça-feira, 26 de julho de 2016

POEMAS DO VENTO
 
Por Joaquim A. Rocha


 
A NOITE
 

Uma noite nesta cidade

- igual a outras!

Sempre igual na verdade.

Sempre igual: nada muda!

Ao descer sobre a cidade

(a noite)

O crime desce à rua

e a mulher (que a ela pertence)

acorda: é manhã para ela!

Espreita à janela

e vê o princípio do seu dia:

a noite!

Vagueia pela rua

ou tem pousada certa

 onde o noctívago a encontra.

Um, outro, ainda outro,

desfilam em sua vida incerta.

A moral é algo que para si não conta.

Os homens da lei patrulham

- mas nada vêem!

A miséria escondida

à noite aparece: roubos, assassínios…

Tudo acontece – de mal - à noite!

Noite perversa

que tudo cobres

com teu manto escuro.

A tua alma denegrida

faz a muitos negra a vida.

Filhos sem pai, elos sem ligação.

Não tens coração, ó noite?!

Lembra-te que tuas filhas

já tiveram almas sãs

que tu lhes roubaste

e nem com elas choraste

essa perda irreparável.

Eu sei que também tu – miserável!

não tens a alma pura

nunca tiveste ternura

nunca tiveste um amigo

que te livrasse da desventura.

Os poetas em ti se inspiraram,

suas lágrimas choraram os enamorados.

Mas ninguém em ti reparou.

Ninguém ouviu teus soluços.

A descrença então de ti se apoderou.

E a tua cólera, a tua amargura,

despeja-las sobre as tuas

vítimas indefesas.

Malditas sejas, ó noite,

que da sociedade és o açoite,

a miséria em ti se alberga!

O criminoso em ti se apoia,

as frágeis filhas se perdem.

As tuas lágrimas, se as chorares,

não compadecem.

Não mereces perdão

és falsa e daninha

és vil e mesquinha

mereces a morte.

Essa será sempre a sorte

de quem como tu alma boa corrompe.

A manhã irrompe. Morre a noite.
 
                                          Voltará?!


domingo, 24 de julho de 2016

OS NOVOS LUSÍADAS
(tentativa de continuação de Os Lusíadas de Luís de Camões)
 
Por Joaquim A. Rocha
 
  
D. João III
 
 
39

 
No tempo do rei Dom João terceiro,

Os lusos foram à Nova Guiné,

Queriam conhecer o mundo inteiro,

Imbuídos de garra e muita fé…

Buscavam a fama, algum dinheiro,

Pimenta, canela, o canapé.

Na mão transportavam a dura cruz

Os arautos do sonhador Jesus.

 

40

 
Atingiram as costas do Japão,

Conquistaram as ilhas Molucas…

Celebes, Sonda, são de Dom João,

As ondas do mar tornam-se eunucas.

Misturam realidade e ilusão,

Como o evangelho de São Lucas.

Ai quem nos dera a nós lá estar

Para ver na praia o barco zarpar.

 

41
 

Cada viagem é uma aventura,

Cada naufrágio uma desgraça;

Navegam entre coragem... loucura,

Entre o grave-sério e a chalaça. 

Morrem de fome, sede, de secura,

Na conquista de Quíloa e Mombaça.
 
E para prolongar a imensa dor
Combatem por Cochim e Cananor.





sexta-feira, 22 de julho de 2016


LINA - Filha de Pã
romance
 
Por Joaquim A. Rocha


 



5.º Capítulo
 

      O tempo foi escorrendo, a vida em Melcarte era carregada de monotonia, eternidades de tédio, sempre igual, uma autêntica pasmaceira. O Doutor Juiz já estava saturadíssimo daquela terra obscura e dos seus desenxabidos habitantes. À amante começa a notar-se-lhe a gravidez. Já tratara da papelada para o casamento. Um determinado dia dirige-se à rapariga:

- Então, já disseste ao lambisqueiro que estás grávida?

     Ela estremeceu. A barriguinha crescera e ela não podia esconder por mais tempo o seu estado.

- Hoje mesmo vou dizer-lhe. Ele até já me falou em casamento, mesmo não sabendo! Senhor Doutor Juiz, vou pedir-lhe um grande favor: – empreste ao Mário o dinheiro para ele embarcar para o Brasil ou para a Argentina – ele depois manda-lho. Assim, eu ficava aqui, casada, e continuávamos a ser ternos amantes. Ninguém desconfiaria de nada.  

- A ideia até não é má! Tens bons raciocínios. Matavam-se dois coelhos com uma cajadada: tu vias-te livre dele, e eu ficava à vontade contigo. Vou pensar nisso.

     O magistrado ficou a ruminar no assunto. Inteirou-se dos preços da viagem, uma bagatela, para ele nada significava; meteu mãos à obra. Mas primeiro tinha de os casar.

     A boda realizou-se a um domingo de manhã, na igreja matriz da Vila. O juiz entrara com as massas para a cerimónia. Não lhe saíra barata a brincadeira, mas fora melhor assim: a criança nascia dentro de um lar, embora humilde, e ele via-se livre de encrencas. Ficara bem visto no concelho: era amigo da empregada, estava ali no seu casamento, pagara as despesas, que mais ela queria? Agora era tempo de zarpar. A transferência já estava resolvida. Ia para Évora, no Alentejo, durante os próximos três anos, bem longe dali. Ela nunca saberia do seu paradeiro. Provavelmente jamais veria o bastardo, não saberia se era rapaz ou rapariga, mas que interessava? Mais tarde casaria com uma fidalga rica e teriam os seus próprios filhos – os autênticos. Dirigiu-se à empregada e diz-lhe:

- Estás muito bonita! O teu marido teve muita sorte.

     Ela enrubesceu, e vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Por que chorava? Acaso tinha quaisquer ilusões? Alguma vez o Senhor Doutor Juiz a tomaria por esposa? Nunca! Nunca!              

- Obrigada, Senhor Doutor. Hoje é um dia muito triste e ao mesmo tempo feliz para mim. O Mário é um bom rapaz e vai tratar bem da nossa criança. Não se preocupe.

- Sim, hoje é um dia especial para nós todos. Haja alegria. Não te arrependerás da decisão tomada.

     Depois do acto religioso, dirigiram-se todos para um restaurante de um hotel das Termas, onde lhes foi servido o almoço, bem regado com o vinho da região, um verdadeiro néctar, segundo os apreciadores.

     À tarde houve baile. O togado despediu-se de todos, desejando felicidades aos noivos. Lina ficou atordoada. Pressentia bem que o perdera para sempre. Provavelmente nunca mais dormiria com ele. Chorou amargamente. O noivo perguntou-lhe:
 

- Por que choras, meu amor?
 

     Ela, banhada em lágrimas, respondeu-lhe:

 
- É por estar tão feliz; não ligues. As mulheres choram, quando amam.

     O Doutor Juiz cumpriu a sua promessa: entregou algum dinheiro ao Mário, a fim de ele tentar ir para a América do Sul. O primeiro passo estava dado. A seguir o recém-casado teria que marcar uma inspecção médica – sem um atestado de boa saúde não poderia obter os papéis; e sem documentos não o deixavam embarcar. O problema era aquela sombra no pulmão direito. Devido a isso, as Repartições Públicas não permitiam que ele emigrasse. Diziam-lhe constantemente: «Cure-se primeiro; depois terá o passaporte.» Para se tratar clinicamente precisaria de muito dinheiro, de apoios. Onde os iria buscar? A Santa Casa da Misericórdia estava praticamente falida, com os seus cofres vazios, não o podia ajudar. As Instituições governamentais não estavam em condições de prestar qualquer tipo de auxílio. A quem recorrer? 

     Trabalhou no porto de Leixões, durante uns meses, na expectativa de partir clandestinamente num daqueles navios, mas o trabalho era duríssimo, demasiado pesado para as suas débeis forças, ainda por cima mal remunerado, e assim, desiludido, cabisbaixo, regressou à sua terra natal.

     A criança já vira a luz do dia. O parto decorrera na maternidade do Hospital da Santa Casa da Misericórdia. Era uma menina. Foi baptizada na igreja matriz da Vila, na maior das simplicidades. Puseram-lhe o nome de Lisete, por assim se chamar a irmã da caridade, a parteira que ajudara a trazê-la ao mundo. Os seus padrinhos foram a Senhora do Rosário e Santo António. Toda a gente ficava a olhar para ela, procurando semelhanças com o pai, mas de Mário nada tinha. As bisbilhoteiras comentavam:


- Aqui há marosca: a Lisete não se parece nada com o Mário! Será que é filha dele? Não será filha do Doutor Juiz? Com esse parece-se! – aventou a Isolina, cuja língua viperina era temida em toda a Vila e arrabaldes.  

- Não sejas má-língua, mulher! Olha que Nosso Senhor Jesus Cristo castiga-te – retorquiu a Palmira, aparentemente mais moderada do que a sua vizinha.

- E que me dizes tu, Palmira, a ter nascido antes do tempo? Nessa não acredito eu!

- Ó Isolina, achas mesmo que é filha do Senhor Juiz?!

- Não tenho bem a certeza mulher, mas do Mário não me parece ser – é tão diferente!
 
     Os comentários foram aumentando à medida que a menina crescia. A semelhança com o verdadeiro progenitor era espantosa. A cor do cabelo, a testa grande, aqueles olhos inteligentes e observadores. Não havia qualquer dúvida: a Lina ludibriara o ingénuo do “Brilhantina”.

- «Que coirão – exclamava a irmã do rapaz – e meti-os eu em casa. Não a quero mais aqui. Rua!»
 
     O Mário andava abatido, destroçado. Fartava-se de trabalhar para alimentar a catraia, que afinal de contas não era sua filha. A Lina agora era criada de servir em São Cristóvão, a dez quilómetros da Vila. A irmã dele já não queria a criança, dizia que não lhe era nada, não era sua sobrinha, que a levasse para outro lado. Ele estava desesperado, tinha os nervos num frangalho. Arranjou um quartinho, onde outrora existira uma oficina de barbeiro, e instalou-se lá como pôde. Alguns vizinhos tiveram pena dele e deram-lhe algumas roupas de cama, mantas velhas, uns cobertores descoloridos, mas que permitiriam aquecê-los no inverno.

     Começou a andar no contrabando, na frota, como na altura chamavam ao comércio ilegal. Levavam certos produtos para a Galiza e lá traziam outros. Fora o irmão mais velho que o convidara:
 
- Ouve, Mário: tu andas para aí aos caídos, aos biscates, mas, se quiseres, o Abílio do Tojal dá-te trabalho, na frota. Claro que é perigoso: dum lado os guardas-fiscais; do outro, os carabineiros. É certo que muitos deles, ou todos, têm as mãos untadas, mas às vezes andam mal dispostos e disparam, sobretudo quando sabem que anda por perto o tenente. Nós temos que ter muita cautela. Por outro lado, começou há pouco tempo a guerra civil espanhola, e anda tudo em alvoroço – podemos levar um tiro em qualquer ocasião.

- E quando se faz o serviço: de dia ou à noite?

- É tudo feito à noite. Logo que escurece a gente mete-se a caminho do rio, com os sacos de café às costas, e depois é só atravessar o rio na batela; do outro lado estão uns quantos galegos que levam a mercadoria.

     O Mário estava com vinte e dois ou vinte e três anos de idade. Fora à inspecção militar na altura própria e ficara isento. Casado, com uma filha, que afinal não era dele, tinha que conseguir algum dinheiro, senão morria à fome.
 

- Está bem, aceito. Quando começo?

- Pode ser hoje mesmo. Vai cear logo connosco, assim já falamos melhor. Quanto à Lisete, leva-a lá para casa, a tua cunhada toma conta dela.

- Obrigado! Vou já tratar disso.

     E foi assim que o jovem foi ganhando uns dinheiritos para o dia-a-dia. Quando viu que já tinha umas magras economias, arrendou uma casinha e disse à mulher para vir novamente para a Vila, ele e a filha precisavam dela. Porém, a Lina já arranjara um novo amante. Ela nunca estivera apaixonada pelo marido, como já atrás se deixou esclarecido; fora apenas um ardil para salvaguardar a reputação do juiz, e a sua própria, porém agora não necessitava mais de fingir. O juiz entretanto fora embora, e nunca mais dera sinal de si. Era de momento, na sua agitada vida, apenas uma recordação. Ficara a criança, que mais tarde seria, tal como a mãe, uma simples criada de servir, ou então casaria com um operário, ou com um camponês fardado. Nada mais poderia esperar da fortuna, ali naquele recanto do mundo, onde Salazar jurara nunca mais lá voltar, quando lá estivera em 1934. Na ponte de São Cristóvão, junto de alguns ministros, Governador Civil, e Presidente da Câmara Municipal de Melcarte, na altura o farmacêutico, Dr. João Magalhães, disse com algum desprezo e enfado: «Isto aqui é o fim do mundo! Está tudo velho, tudo a cair… Não me convidem para vir cá mais.» E de facto o ditador jamais retornou a Melcarte. Nos seus discursos dizia sempre: «De Valença a Timor…» Este concelho e o vizinho tinham desaparecido pura e simplesmente do mapa! E fez mais: a maioria dos professores do ensino primário passou a ser composta por regentes, apenas com a quarta classe do ensino primário!

quarta-feira, 20 de julho de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha



Cartas de um castrejo 

18.ª - «Senhor Redactor: assim como a revolução francesa abalou e convulsionou, nos seus seculares alicerces, os velhos princípios que seguiam as nações, assim a criação de escolas nesta freguesia, de acordo com a população e os recenseamentos, há-de transformar e purificar, até, a nossa vida de sempre. Havemos de ser, porque assim o queremos e temos do nosso lado a Justiça, os cidadãos conscientes de que a Pátria necessita, os homens aptos para superar as maiores contrariedades da vida, tudo o que aspiramos, como membros duma nação livre e com foros de civilizada. Porém, o indispensável para a concretização destas aspirações é a luz que provém da instrução – e esta só nos pode vir da escola. Queremos escolas, pois, e não trepidaremos em afrontar as maiores contrariedades para adquiri-las. Não nos falha a esperança de que o Ministro da Instrução ouviu os nossos rogos justos da última carta e que, em breve, mandará saber das nossas necessidades, com relação às escolas a criar nesta freguesia. A paróquia não bole, a Câmara Municipal de Melgaço não ouve?! Nós não desanimaremos, enquanto o Correio de Melgaço receber as nossas cartas e as publicar, certos de que, tanto teimaremos, tanto levantaremos os brados da nossa incontestável justiça, que seremos (…) ouvidos. // As searas e os batatais conservam um aspecto regular; porém, estes precisavam o tratamento cúprico. Os nossos cultivadores não conhecem ainda esta vantagem: teriam melhores frutos e a conservação mais segura se aplicassem o sulfato nos seus batatais. Experimentem. / Castro Laboreiro, 2/6/1916.»

segunda-feira, 18 de julho de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO


Por Joaquim A. Rocha





CASA DO REGUENGO

 

     Sita na freguesia de Paderne, concelho de Melgaço. // No século XVI a Quinta pertencia a Fernando de Castro, alcaide-mor de Melgaço, casado com Ana Meneses, que a vendeu – através de um seu representante em Lisboa – a 24/3/1606, por um milhão e cinquenta mil réis, a Inácio Velho de Araújo, mercador, com fortuna angariada em negócios vários, sobretudo na Índia. Este Inácio veio viver para esta Quinta, chegando a ter algum prestígio, graças ao seu dinheiro, pois foi provedor da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço. Como não tinha herdeiros, deixou esses bens à dita Santa Casa. // Não tardou a ser vendida de novo: o capitão Agostinho Soares de Castro Vasconcelos, detentor do hábito de Cristo, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço em 1673 e 1685, filho do capitão Miguel Castro Soares e de Madalena Felgueiras, e neto paterno do abade Tristão de Castro, comprou-a, a 29/9/1675, à Misericórdia de Melgaço, por 520 mil réis e um foro de oito lampreias, e depois mandou construir ali o seu belo solar, que ainda hoje nos encanta. // Em 1759 residia ali Agostinho Soares de Castro e esposa, Benta Antónia da Silva Sotomaior. // Também pertenceu a José de Sá Sotomaior, antigo presidente da Câmara Municipal, o qual, a 14/2/1868, no estado de solteiro, foi padrinho de Guilhermina Martins, nascida em Paderne dois dias antes. // Com a chegada do regime republicano, a 5 de Outubro de 1910, os fidalgos perderam muitos dos seus privilégios, deixando de ter capacidade financeira para suportar as despesas com estes solares, acabando por os vender aos novos ricos, gente da indústria ou do comércio. Nessa Quinta produz-se alvarinho de qualidade. // O Solar nos últimos anos tem servido de Hotel.      

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Provável origem da palavra Paderne


JUNO E JUPITER


Quanto a mim, Paderne, em questão de nome, tem menos uns anos do que Melgaço. Vou tentar explicar porquê. Tal como fiz para o primeiro caso, também vou transcrever alguns documentos, a fim de conseguir o meu objectivo, que é veicular uma explicação aceitável para estes topónimos. Comecemos então por Aldomar Rodrigues Soares “Mário de Prado” (1913-1962):

      [«Muito se tem dito e escrito sobre o famoso cipo funerário (outros chamam-lhe estela de Paderne), chegando mesmo alguns autores de antiguidades a tomar alhos por bugalhos e a confundi-lo com o túmulo da abadessa D. Paterna e de seu marido, quem quer que este tenha sido: conde ou plebeu, Hermenegildo ou não… / Ora eu, que estou devida e iconograficamente documentado, e sei do paradeiro de todos eles, posso já garantir que são coisas muito diferentes. E quem não quiser acreditar que vá ver o tal cipo no Museu Etnológico de Belém e as duas tampas tumulares no Museu Nacional Soares dos Reis, do Porto, para onde estas foram levadas do Museu Arqueológico do Carmo, e onde figuram com os números 28 e 29 na respectiva Secção Lapidar. / De resto, podia também dizer agora de como e quando as três peças foram desenterradas na sacristia do velho Convento; de como e quando o Dr. José Leite de Vasconcelos, fundador e director do Museu Etnológico de Belém veio a Paderne, as viu no adro do dito Convento, as cobiçou, e diligenciou para removê-las para aquele Museu; dos óbices e peias que o solicitador Manuel José Nóvoas, do Outeiro, então vogal da Junta de Freguesia de Paderne, bairristicamente teceu e forjou para que as faladas peças não saíssem dali, etc., etc., pois tudo isso anda escrito em letra de forma. Hoje, porém, apenas desejo arquivar nestas colunas a gravura do tal cipo funerário, na esperança de que surja algum estudioso que, com olhos de lince e sólidos conhecimentos nestes assuntos, consiga reconstituir a sua inscrição e dela dar-nos uma versão convincente, pois o que sobre a mesma corre… não convence. Mas até lá nada me impede de fazer o seu estudo e consignar aqui as minhas conclusões. / Ora esta pedra, que é de forma irregular e mede aproximadamente 1,60 metros, 0,15 metros e 0,50 metros, respectivamente, de altura, espessura e largura, pode dividir-se em quatro segmentos, no segundo dos quais, num nicho superiormente recurvado, vemos duas figuras em pé que, a julgar pelas feições e pelo vestuário, são homem e mulher. Cada uma delas segura um vaso na mão direita e dá a esquerda à outra; e, porque a figura mutilada do primeiro segmento é provavelmente um sacerdote* que também segura um vaso…, é de admitir, pois, que esta cena nos represente a cerimónia dum casamento pagão, estando, ou preparando-se, assim, sacerdote e nubentes, para fazer as libações do ritual. / No terceiro segmento, transbordando para o quarto, vê-se a famigerada inscrição que tantas dores de cabeça tem causado a todos quantos dela se têm ocupado, cuja leitura, apesar dos meus conhecimentos de latim irem pouco mais além do que os que tenho de chinês, desdobradas as respectivas abreviaturas e depois do começo usual destes epitáfios, que geralmente abriam com um «Diis manibus sacrum», ou com outra fórmula semelhante, quero vê-la assim: / …Ennjus Filius Annorum C et Compar Valerivs Compar Ard/e Annorum L Hic Situs Sunt Pentvs Compar Fecit Caelamem (?). / Isto para vernáculo talvez se pudesse verter deste modo: «… (fulano), filho de Énio, de cem anos, e seu companheiro Valério, esposo de Arda, de cinquenta anos, estão aqui sepultados; seu companheiro Pento fez (ou cinzelou) esta obra». / Será assim…? Não será…? Discutam os cabos o assunto e digam da sua justiça, que eu, nisto, como aliás em tudo, continuo a ser praça rasa, e não vejo jeitos de vir a ser promovido a… entendido.»]

     (Este artigo, publicado primeiramente em “A Voz de Melgaço” foi inserido no livro “Padre Júlio Vaz apresenta Mário”, de 1996, páginas 61 e 62).  

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     A. Freixinho diz que se trata de um guerreiro. A ser Júpiter, de facto era apresentado por vezes como um deus guerreiro, a grande potência tutelar do Império, em Roma como no estrangeiro.

     Este cipo em pedra dá-nos uma pista para explicar Paderne como local sagrado. Muito antes de ter sido construído o mosteiro cristão, existiu ali certamente um monumento dedicado a um deus, talvez Júpiter (Paterni, o pai), ao qual se fariam sacrifícios de animais e se ofereceriam diversos produtos, sobretudo dos campos. Lê-se em “Portugal – das Origens à Romanização”, na página 374, obra dirigida por Joel Serrão e Oliveira Marques: «Na área da Idanha, um certo Tibério Cláudio Rufo (século I d.C.) ofereceu uma ara a Júpiter em agradecimento por 120 libras de ouro que recolheu. Esta quantidade de ouro equivaleria à soma necessária para construir um teatro e um templo

       E em “Religiões da Lusitânia”, volume III, páginas 567 e 568, citando São Martinho de Dume (século VI): «E levou os rústicos a erigirem-lhe templos com estátuas e aras, onde se derrama sangue, não só de animais mas [também] de seres humanos.» E prossegue: «… até deram aos dias da semana denominações diabólicas – Marte, Mercúrio, Jove (Júpiter), Vénus, Saturno».

     Os monges e freiras cristãos não ousaram destruir todos esses vestígios ou testemunhos do passado longínquo, mas encobriram-nos, para que ninguém soubesse, além deles, que antes do cristianismo existiram outras religiões, outros deuses, venerados por imensa gente. A ignorância passou a ser um factor de dominação.

     O nome do sítio já era muito antigo e ninguém conseguiu modificá-lo; no entanto, pouco a pouco, a sua origem foi sendo apagada, e em nossos dias não passa pela cabeça de nenhuma pessoa relacionar Paderne com o deus Júpiter, a quem chamavam Paterni (pai dos deuses).

     Com o advento da nacionalidade, no século XII, houve necessidade de administrar o território, sobretudo militarmente, pois os riscos de invasão por parte do inimigo eram muitos. Assim, Afonso Henriques, transformou, em 1141, o território de Paderne num couto, anexando-lhe Cousso e Cubalhão, e excluindo São Paio, que inseriu no recém-criado concelho de Melgaço, e talvez Alvaredo, que passou para o concelho de Valadares.

     O couto tinha a obrigação de defender parte da fronteira, que se tornou perigosa (talvez seja essa a razão principal das freiras terem saído de Paderne), conjugando esforços com outras forças, daí os seus habitantes estarem isentos de cumprir o fossado e outros deveres, aparentemente na forma de privilégios.

     Se queremos então relacionar Paderne com Júpiter, precisamos saber o que esse deus representava no panteão romano:

           «Pai e soberano dos deuses, deus do céu, do raio e do trovão, que reinava no Capitólio (cidadela e templo no monte Capitolino, uma das sete colinas da Antiga Roma), onde os triunfadores eram coroados. / Era filho de Saturno (equivalente ao Cronos grego), primitivo soberano dos deuses, e de Reia, mãe dos deuses, do céu e da terra. / Nasceu numa gruta em Creta, tendo sido confiado a duas ninfas, que o alimentaram com o leite da cabra Amalteia e o mel do monte Ida. Da pele dessa cabra fez Júpiter o broquel que usava sobre os ombros. / A sua consorte era Juno, a mãe dos deuses     

     Sobre o Monte do Capitólio, num planalto junto da cidadela, os etruscos projectaram e construíram em pedra o maior templo da Itália, dedicado a Júpiter, que eles consideravam «o melhor e o maior». (Tudo isto, e muito mais, se pode ler em “Os Romanos”, de Michael Grant e Don Pottinger, Moraes Editores). 

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          Existem várias abordagens para explicar o nome Paderne. Vejamos:

1.ª - {«Paderne era nome comum a toda a região, incluindo a actual freguesia, e as de São Paio e Alvaredo. Parece que o topónimo quer significar Saturno (da palavra celta Padern). É tradição que na Cividade houve um templo pagão dedicado a esse deus, protector da vinha e ligado à agricultura; em abono desta tradição temos o facto de naquela povoação terem aparecido alguns capitéis e outros ornatos, e uma estela funerária que depois de ter sido levada para o adro do convento, onde esteve como lájea, o Dr. José Leite de Vasconcelos levou-a em 1903 para o Museu Etnológico de Belém; esta estela apresenta num nicho recurvado duas figuras, homem e mulher, e é rematada por um busto decapitado segurando um vaso e a inscrição:…» (Ver mais acima o texto de “Mário de Prado”; o autor deste naco de prosa é-me, para já, estranho).  

2.ª - «A origem do nome Paderne tem sido objecto de atenção da parte de alguns escritores, atribuindo a sua origem a Dona Paterna, fundadora do mosteiro do Salvador de Paderne. / Como o nome de Paderne seja mais antigo do que o mosteiro do Salvador, alguns (…) – para fazerem prevalecer esta etimologia – têm chegado a negar a existência de Dona Paterna, dando ao mesmo tempo como hipótese sua filha Dona Elvira, atribuindo então a sua origem a qualquer homem poderoso, de nome Paterno, e de preferência uma Paterna. / Esta etimologia torna-se um tanto forçada e ao mesmo tempo repugnante. Existem em Portugal – pelo menos – mais três terras com o nome de Paderne, e então seríamos obrigados a dar para cada uma delas um homem poderoso com o nome de Paterno – ou, de preferência, uma Paterna – a fim de encontrarmos a sua origem. / O nosso “Notícias” (…) julga-se com todo o direito de reagir, apresentando a sua opinião aos seus estimados leitores, quanto à origem do nome Paderne – nome comum às duas freguesias de São Paio e Salvador, do concelho de Melgaço. / Os principais lugares de habitação das tribus proto-históricas no nosso país eram nos altos das montanhas, das quais nos restam ainda muitos vestígios que hoje se chamam Castros, Crastos, Castrelos (…), cuja origem é pré-romana e puramente lusitana. (Consultar “Religiões da Lusitânia”, volume II, página 79). / Perto destes Crastos passam ordinariamente correntes de água, mais ou menos caudalosas. Depois de percorrer todo o território pelas duas freguesias de Paderne – examinando os seus outeiros cónicos, onde não faltam todas as características de castros pré-romanos – ninguém pode duvidar que estes se tornassem invencíveis por grande espaço de tempo, e que deles tirassem o nome de Paderne. / Paderne – que devia ser Paderna – é palavra antiga; vem do antigo lusitano; significa lugar alto, rude, duro e invencível. / Esta etimologia torna-se mais associável e portanto mais digna de crédito. Frei Agostinho de Santa Maria, descrevendo a freguesia de Paderne no concelho de Albufeira, Algarve, diz o seguinte: «Para a parte do ocidente, em distância de duas léguas, se vê o lugar de Paderna, a que outros erradamente chamam Paderne, por outro título semelhante que tem um lugar entre Douro e Minho, no arcebispado de Braga.» / Tornando à origem do nome Paderne, concluímos que este era comum ao território ocupado pelas duas freguesias, e portanto muitíssimo anterior aos seus mosteiros – ainda mesmo ao de São Paio – e que estes tomavam o seu nome da terra onde foram construídos. / Quanto à existência de Dona Paterna e sua filha Dona Elvira, fundadoras do mosteiro do Salvador de Paderne – [tese] impugnada por alguns – torna-se um facto acreditável, pois tudo quanto nos dizem as histórias do mundo nos vem pela boa-fé que lhes damos. / (…) / As pedras do venerando mosteiro (…) são outras tantas páginas que nos falam da sua nobre fundadora. / Pinho Leal fala das pedras da sepultura dos dois cônjuges – o conde Hermenegildo e sua esposa Dona Paterna – mencionando duas sepulturas com tampa de pedra, uma com uma estátua de um guerreiro em baixo relevo e outra com a figura de uma mulher, também em baixo relevo, cujos restos arqueológicos desapareceram do mosteiro de Paderne para irem figurar nos museus de Lisboa. / Ainda alguns escritores, ingratos para com o paladino de Tui – negando a sua existência – chegaram a confundir este com outro conde Hermenegildo (*), vencedor do conde Witiza, no tempo de Afonso III, o Magno «sic transit gloria mundi».} / (A. Freixinho, in “Notícias de Melgaço” n.º 894, de 3/4/1949).         

(*) Nota: o vencedor de Witiza chamava-se Ruderico (Roderico, Rodrigo) e não Hermenegildo (ver “História da Civilização Ibérica”, de Oliveira Martins, página 111).

 3.ª - «Chama-se de Paderne conforme um manuscrito antigo de Dona Paterna, mulher de Dom Ramiro, rei de Leão, primeira Senhora desta terra, ou conforme alguns de Dona Paterna, mulher de Dom Hermenegildo, conde de Tui; antigamente se chamava Paterna esta terra e agora com alguma corrupção do nome se chama Paderne

     Nota: Quem isto escreveu foi o pároco da freguesia, em 1758, em resposta a um inquérito nacional, que tinha por objectivo elaborar um dicionário geográfico do país. (Ver “As Freguesias do Concelho de Melgaço Nas Memórias Paroquiais de 1758”, página 166).

4.ª - «Houve aqui um mosteiro de cónegos regrantes de Santo Agostinho, fundado pela condessa Dona Paterna, viúva de Dom Hermenegildo, conde de Tui, numa sua grandiosa quinta, que possuía nestes sítios, com outras propriedades e aldeias. Fundou o mosteiro para nele se recolher com suas quatro filhas, e outras nobres senhoras de Tui, que as quiseram acompanhar. / Em 6/8/1130, estando as obras concluídas, foi sagrada a igreja do mosteiro pelo bispo de Tui, Dom Paio, que também nesse dia o dedicou ao Salvador, e lançou à condessa, suas filhas e mais companheiras, o hábito das cónegas de Santo Agostinho. Mandou para confessores e capelães sete clérigos que em 1138 se fizeram regulares da mesma ordem, vivendo em comunidade. A condessa lhes mandou fazer claustros, dormitórios, celas e mais oficinas, do lado do sul da igreja, que os dividia das freiras, que ficavam ao norte. (*) A fundadora foi a primeira prioreza das freiras, e Dom Ramiro Pais o primeiro prior dos religiosos. / A povoação tomou o nome de Paterna, que depois se corrompeu em Paderne, porque ao mosteiro se dava o nome de mosteiro de Paterna. Não se sabe quando deixaram de existir aqui freiras, mas sabe-se que em 1248 só havia frades, tendo por prior Dom João Pires, grande partidário de Dom Afonso III, pelo que este monarca fez grandes doações ao mosteiro, concedendo-lhe muitos privilégios. O mesmo prior, sendo a igreja muito pequena e antiga, a mandou demolir em 1264, construindo-se outra, que foi sagrada em 6 de Agosto deste ano, pelo bispo de Tui Dom Emígdio.» (“Dicionário Histórico, Biográfico, Bibliográfico, Heráldico, Corográfico, Numismático e Artístico.” / João Romano Torres – Editor. 1903).      

     (*) {«… A nostalgia devia ser, porém, natural em anos tão verdes e por isso o bispo mandou logo para confessores e capelães, do piedoso redil das cónegas, sete clérigos, que a crónica diz serem de boa vida; e tanto de boa vida ali se deram que oito anos depois se faziam regulares sob a mesma regra de Santo Agostinho, vivendo em santa comunidade – entre si, entenda-se – que não vá a malícia do leitor supor que era em comunidade com as cónegas gentis. // (…) Em 1140 faleceu a prioreza e foi sepultada numa capela-mor, ao lado do Evangelho, tendo em meio relevo a sua figura sobre a tampa do sarcófago. Junto a ela, em meio relevo também, está a figura dum guerreiro, que se supõe ser o conde Dom Hermenegildo. A inscrição deste túmulo está ilegível, por muito gasta. / No priorado sucedeu-lhe sua filha, Dona Elvira, à qual Dom Afonso Henriques doou o couto de Paderne em 1141, dizendo nessa doação: «lh’a fazia pelos bons serviços que lhe fizera quando ele estava sobre o castelo de Castro Laboreiro, a quem tinha cercado, mandando-lhe mantimentos e alguns cavalos, entre eles um muito formoso e jaezado ricamente para a sua pessoa.»} (ver “O Minho Pitoresco”, páginas 33 e 34).   

5.ª - {«Assim, deixou claro (o padre Bernardo Pintor) que o nome de Paderne deriva do patronímico Paterni e que a origem deste mosteiro nada tem a ver com Dona Paterna, viúva do conde de Tui, Dom Hermenegildo, por alguns considerado também conde do Porto, e que a identificação da abadessa, Dona Elvira Sarrazins, como filha de Dom Hermenegildo e de Dona Paterna não passa de uma confusão e transferência abusiva, que a própria distância cronológica não consente, com os dois nobres fundadores do mosteiro do Sobrado, da diocese de Iria, próximo de Santiago de Compostela, nos meados do século X ou, mais concretamente, em 952. Vejamos as suas próprias palavras (do padre Bernardo Pintor): «De também o mosteiro de Paderne ser dúplice [freiras e monges] nos seus princípios, ser dedicado ao Divino Salvador e ter à sua frente em 1141 a abadessa Dona Elvira, deveu surgir, em época posterior, a confusão de fazer esta dita abadessa filha de Dom Hermenegildo e de Dona Paterna.»} (Ver Professor Dr. José Marques, “O Cartório e a Livraria do Mosteiro de Paderne em 1770”, Boletim Cultural da Câmara Municipal de Melgaço, número 1, páginas 11, 13 e 19). 

     6. ª - {«Parece tratar-se de topónimo do norte, pois (…) encontra-se com muita frequência na Galiza: Corunha, Lugo (vários casos), Ourense, Pontevedra. Também está na província de Oviedo, aqui, ao lado de Paderni; na Corunha também temos Paderno; Padierno em Salamanca; nesta e em Ávila há Padiernos; Paderna na Galiza (Lugo) e Paterna na província de Valência; Trespaderne, em Burgos; o carácter setentrional do topónimo algarvio talvez se possa também verificar pela presença de p-; este é Paterna em 1267 (Portel, p. 40); no Algarve aparece sempre Paderna (II, 3; VII, 2, 3, 11), mas Paderne no «De Itinere Navali», etc., na Relação da Derrota Naval, façanhas, e sucessos dos cruzados que partiram do Escalda… (Lisboa, 1844), página 43. Em Clarimundo está Paderne (III, p. 97). Notar agora o (casal de) Paderni em texto de 1258 (Inquirições, página 361). Notar em 1125: «ecclesiam Sancti Pelagij de Paterni integram in ripa Minei…» (D.M.P., I, p. 89). Tratar-se-á de Paterni (villa), genitivo do antropónimo masculino Paternu-; no caso de Albufeira podemos ter uma transplantação toponímica ou mais um exemplo do e, final, devido à articulação meridional. O antropónimo Paterno tinha algum uso, devido talvez ao célebre santo do mesmo nome (séculos IV e V), o mesmo que, por ser orago de templo, deu origem ao santo Paderno, em Melgaço. Como se verifica, na toponímia também há vestígios do respectivo feminino, como o próprio nominativo Paternus.»} (José Pedro Machado, “Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa”, páginas 1114 e 1115).     

     O mesmo autor lembra, no dito Dicionário, página 1114, o Monte da Paderna, sito em Odemira. Acha que é uma adaptação de Paderne «tratando-se, como parece, de alusão a mulher do local, oriunda de Paderne…»

     No “Dicionário de Santos”, de Jorge Campos Tavares, fala-se do santo Paderno, o qual terá nascido cerca de 480 e foi bispo de Avranches, cidade da Normandia; fez apostolado no Cotentin e fundou, perto de Granville, o mosteiro de Saint-Pair-sur-Mer. / Como as mordeduras de serpente não o afectavam, é evocado quando alguém é atacado por cobras.

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      Depois do que ficou acima escrito, muitos leitores perguntarão: «Mas como é que os romanos, ou pessoas romanizadas, vieram parar ao território do nosso Alto Minho?» A explicação é relativamente simples e tem a ver com a história do Império Romano. Os fenícios vieram até aqui por motivos comerciais; os legionários vieram para a Península Ibérica a fim de lutar contra os cartagineses que ameaçavam Roma. Os soldados, depois de anos de lutas intensas e desgastantes, passavam à situação de reformados e era-lhes oferecido pelos generais terras que iam conquistando no seu percurso. Os romanos, segundo nos ensina a História, sempre gostaram da agricultura. A guerra era somente um episódio nas suas vidas. Como tinham as armas, a força, podiam escolher para si as melhores quintas. E de facto escolheram: os terrenos perto do rio Minho, férteis e adubados pela natureza, com temperaturas amenas, com chuvas abundantes. Em Cristóval, Paços, Chaviães, vila de Melgaço, Prado, Remoães, Alvaredo, Penso, São Paio e Paderne, tudo lhes pertenceu em determinada altura. Quanto às terras mais altas: Fiães, Castro Laboreiro, Lamas de Mouro, Gave, Parada do Monte, etc., não sei, julgo que não lhes deve ter interessado por aí além.

     Quanto a mim, alguns desses antigos legionários fixaram-se no sítio que é hoje Paderne e aí construíram as suas casas e quintas, as famosas «villa». Com eles trouxeram a sua religião, como todos os emigrantes fazem. O culto ao deus Júpiter estava generalizado, era quase como os cristãos em relação a Jesus Cristo. Rapidamente lhe devem ter construído um templo e esse local, e arredores, ficou a ser conhecido por Paterni, em homenagem ao pai dos deuses, tal como acontecera com Melgaço séculos atrás. Tinham trazido também a sua língua, o latim, que se espalhou por toda a península, salvo raras excepções, apagando do mapa quase todos os outros idiomas. Dialectos com mais de oitenta mil anos pura e simplesmente desapareceram! Restou o vasconço, língua ainda hoje falada. 

   Depois, no século V, chegaram à Península Ibérica os chamados povos bárbaros: vândalos, do norte da Jutlândia; suevos, também germanos, da bacia do Elba, os quais fundaram o reino da Galécia, que durou até 585, cuja capital era Braga, tendo-se convertido à fé católica; alanos, vindos do Cáucaso e do nordeste da Rússia; visigodos, ramo ocidental dos godos, vindos das planícies do Dniepre, rio da Rússia, Bielorrússia e Ucrânia, de religião ariana, aceitando o catolicismo no século VI, os quais foram derrotados pelos muçulmanos no ano de 711, na famosa batalha de Guadalete, todos eles se espalhando por toda a parte, misturando-se alguns deles com os autóctones, e a religião dos romanos, e não só, pouco a pouco, sumiu-se! Deles, romanos, ficou a língua, as suas leis, os seus métodos administrativos, as suas técnicas agrícolas. O nome Paderne conservou-se, felizmente, até nossos dias. Ali perto os cristãos criaram a freguesia de São Paio, em homenagem ao santo Pelágio, e construíram imensas igrejas e capelas, esquecendo-se tudo que para trás ficara. Só graças à arqueologia é que se vai descobrindo, aqui e ali, vestígios, as ruínas do passado.

     E por falar nisso, agora, que se fala tanto em turismo cultural, por que é que não se investe mais em escavações, Governo e Câmaras Municipais, a fim de se trazer à luz do dia esses legados de civilizações antigas? Quase todo o velho concelho de Melgaço esconde, disso tenho a certeza, imensas riquezas arqueológicas. Quem se esqueceu já do que se encontrou, por mero acaso, quando se construía, há uns anos atrás, a estrada nova? Praticamente está tudo por fazer neste pedacinho de Portugal. Na minha perspectiva, um povo que ignora o seu verdadeiro passado é um povo inculto. É necessário dar à lenda o que é da lenda; e à História o que lhe pertence por direito.              
                                                                                                    Joaquim A. Rocha