quinta-feira, 29 de setembro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha







Macróbios

 

ABELHEIRA, Albertina. Filha de António Abelheira, trabalhador, natural da freguesia de Suajo, concelho dos Arcos de Valdevez, e de Rosa Alves, doméstica, natural de Paderne, Melgaço, onde residiam, no lugar de Pomares. Neta paterna de Domingos Abelheira e de Maria Domingues Nogueiró; neta materna de António Alves e de Ludovina Rosa Afonso. Nasceu em Paderne de Melgaço a 12/5/1906 e foi batizada na igreja do mosteiro a 17 desse mês e ano. Padrinhos: Luís Lourenço, solteiro, lavrador, e Germana Alves, solteira, doméstica, tia materna da neófita. // Casou na Conservatória do Registo Civil de Melgaço a 25 de Maio de 1932 com Manuel de Carvalho. // Morou no Barral, São Paio de Melgaço. // O seu marido morreu em Parada do Monte, freguesia de Melgaço, a 12/2/1980. // Ela faleceu em Monserrate, Viana do Castelo, a 11/11/2008, no hospital, no estado de viúva, com 102 anos de idade, e foi sepultada no cemitério da sua freguesia de nascimento.  

ALVES, Delfina. Filha de Manuel Joaquim Alves e de Maria Benedita de Abreu, moradores no lugar de Estivadas, freguesia de Paderne de Melgaço. Neta paterna de Custódia Maria Alves, solteira, do dito lugar; neta materna de Custódio José de Abreu e de Maria Angelina de Almeida, do lugar de Queirão, Paderne, todos lavradores. Nasceu em Paderne de Melgaço a 23 de Março de 1885 e foi batizada na igreja católica local a 25 desse mês e ano. Padrinhos: a sua avó materna e seu filho, Luís Manuel de Abreu, solteiro, do lugar de Queirão. // Casou na igreja do mosteiro a 28/11/1910 com José Fernandes, de 25 anos de idade, padernense, filho de Manuel Joaquim Fernandes e de Ana Rosa Flores. // Ambos os cônjuges faleceram na freguesia de Paderne: o seu marido a 15 de Outubro de 1964 e ela a 20 de Janeiro de 1987, com quase cento e dois anos de idade. // Deixou geração.

terça-feira, 27 de setembro de 2016


       ENTRE MORTOS E FERIDOS
          (dois anos de guerra na Guiné-Bissau)


Por Joaquim A. Rocha




13.º Capítulo


 
A CAMINHO DE CUFAR
 
 

     Mais um domingo lisboeta. As lindas ruas da Baixa… sempre a abarrotar de gente! Começava a notar-se turistas estrangeiros e imigrantes africanos por tudo que era sítio. Políticas de imigração não existiam; entrava quem queria neste pequeno e periférico país. Depois da descolonização vieram de África centenas de milhar de pessoas: novas, velhas, saudáveis e doentes; honestas e nem por isso.

     Os dois amigos reencontraram-se, como já era hábito, no Café Suíça; mas agora já era difícil arranjar um lugar, pois as mesas estavam quase sempre ocupadas. Esperaram um pouco e lá conseguiram sentar-se. Henrique perguntou:
 

- Depois de Bolama foram para onde?

- Encaminhamo-nos para Cufar (que numa das línguas locais significa morrer, terra onde se morre).

     Três dias antes de partirmos escrevi a uma cantora do norte, a tal namorada do fadista, na altura já muito em voga, de seu nome Mariana, a pedir-lhe que fosse minha madrinha de guerra. O Luís Augusto, assim ele se chamava, deu-me a morada e eu não hesitei – se ela não respondesse o que perderia eu? O fadista queria era ler as cartas dela, pelos vistos estavam indiferentes.

- E ela respondeu?

- Nem pensar! Silêncio absoluto. Responder a um soldado? Se eu fosse oficial! Escrevi também a duas raparigas do Minho, de origem modesta.

- Essas responderam.

- Sim, essas aceitaram o meu pedido. Queres que te leia as cartas?

- Adoraria.

- Como tive sete madrinhas de guerra, somente te vou ler as cartas de uma delas, apesar de serem todas interessantes.

- Sete?! Nada mal: uma para cada dia da semana! Gostaria que as lesse todas, mas já que não quer…

- Não se trata de querer ou não querer, simplesmente seria enfadonho para ti. E tens sorte eu trazer uma dessas cartas, pois com as mudanças de quarto não sei como ainda as conservo! Eis a primeira:

 
   Senhor

                Recebi o seu aerograma e realmente fiquei surpreendida e para mais sendo de uma pessoa para mim desconhecida. Ainda gostava de saber quem foi esse meu conterrâneo conhecido que lhe deu o meu nome e morada, mas já calculo quem seja e da minha parte diga-lhe que mando os meus parabéns; eu não me importo ser madrinha de guerra do senhor, mas desde já lhe digo que sou ainda muito nova, pois tenho somente dezoito anos. Se isso não lhe causa nenhum impedimento, eu pela minha parte aceito.

     Diz o senhor que é de Melgaço, realmente é uma terra muito linda, já lá fui algumas vezes, mas é pura coincidência, tenho também uma pessoa na família que foi madrinha de um rapaz dos seus sítios, que estava em Moçambique, mas felizmente já voltou para cá são e salvo.

     E é tudo, não tenho mais nada para lhe dizer, mas há-de ver que daqui para o futuro as cartas que lhe escrever não vão ser curtas, pois a mim parece-me que se fosse jornalista havia de ter sempre qualquer coisa para pôr nos jornais, quem sabe, ainda pode ser que o venha a ser, ainda sou nova e o mundo dá tantas voltas…

     Receba cumprimentos sinceros da que já pode considerar madrinha de guerra.

                                                                                  Fernanda

 

- Parece-me que teve sorte. Moça brilhante a escrever, nova e culta. Uma minhota inteligente.

- Sim, é verdade. No entanto…

- Aconteceu depois alguma coisa desagradável?!

- Se não te importas, continuo a contar-te a minha modesta odisseia. Mais tarde digo-te o que se passou com esta madrinha. Não levas a mal?

- De modo algum! Preciso controlar a minha mórbida curiosidade. // continua...

domingo, 25 de setembro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 
não matarás
 
 
 
crimes
 
 
 
GARCIA, Joaquina Rosa. Filha de João Garcia e de Maria Esteves, lavradores. Nasceu em Penso por volta de 1808, ainda essa freguesia pertencia ao concelho de Valadares, hoje freguesia de Monção. // Lavradeira. // Faleceu a 27 de Setembro de 1870, com 62 anos de idade, viúva de Manuel Caetano Rodrigues, e foi sepultada na igreja paroquial. // Escreveu o pároco: «encontrou-se assassinada em sua própria casa, no lugar das Lages, Penso.» E mais à frente: «declaro que a finada tinha recolhido em sua casa um rapaz natural da Galiza, não tinha dado terra certa em alguns dias que tinha estado nesta freguesia, procurando casa aonde se justasse para servir, sucedeu no dia 27 um filho da finada, por nome António José Rodrigues, e uma filha da mesma, Maria Teresa Rodrigues, saírem para a feira do dia vinte e sete, ficando a mãe destes com o criado em casa, e ao recolherem-se daquela acharam sua mãe morta, tendo desaparecido o criado, que levara um relógio, vestiu-se com calça, colete, jaqueta, camisa e chapéu, do filho da finada, deixando os andrajos com que andava vestido antes, e a camisa com sangue nos pulsos, aparecendo rasto de querer abrir uma caixa, com uma machada, martelo, cinzel, tudo da mesma casa, o que tudo indica ser o matador o mesmo criado, a quem o guarda do barco de Sela [Galiza] tirou o relógio que lhe quis vender, por o dito guarda suspeitar era furtado e o mandou para seu dono ao depois de inteirado do sucedido. Fiz esta declaração para constar
 
     // Nota: é sempre perigoso meter em casa quem não se conhece. Como bem diz o ditado: «cautelas e caldo de galinha nunca fez mal a ninguém
 
 
 
 
 
 

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

GENTES DE MELGAÇO
(microbiografias)


Por Joaquim A. Rocha




CARVALHO, Luís Augusto. Filho de Francisco José de Carvalho e de Antónia da Assunção de Neiva, moradores no lugar da Carreira. Neto paterno de João Batista de Carvalho e de Rosa Joaquina Gomes Veloso, da vila, SMP; neto materno de Manuel Joaquim (ou Manuel Caetano) de Neiva e de Lina (ou Luísa) Teresa Fernandes, do lugar da Carreira, todos lavradores. Nasceu em São Paio de Melgaço a 29/8/1880 e foi batizado na igreja a 31 desse mês e ano. Padrinhos: António Joaquim de Neiva e Genoveva Augusta de Neiva, proprietários, moradores em Parada do Monte (ele era professor oficial do ensino primário). // Casou na Conservatória do Registo Civil de Melgaço a 21/3/1915 com Rita Esteves Codesso, de 22 anos de idade, residente em Lisboa, filha de Manuel José Esteves Codesso e de Maria Vaz, natural do lugar das Mós, freguesia de Penso. // Partira para Moçambique em 1898 onde, a 15/6/1912, foi promovido a 1.º sargento da Companhia de Saúde do Ultramar. // Em 1913 esteve de visita à terra natal, de onde partiu para Moçambique (Correio de Melgaço n.º 76, de 23/11/1913). // Em 1918 foi promovido a capitão (*), sendo colocado em Cabo Verde, onde esteve até 1925, data em que veio para o Hospital Colonial de Lisboa. // Reformou-se em 1930. // No Notícias de Melgaço n.º 199, de 25/6/1933, pode ler-se: «na passada quarta-feira, de tarde, quando se estava realizando a feira, no Largo Hermenegildo Solheiro, encontraram-se Marcelino Ilídio Pereira, comerciante e rico proprietário de Penso, e o capitão Luís Augusto de Carvalho, os quais, depois de alta e acalorada discussão, passaram a vias de facto com os respectivos guarda-sóis, sendo o primeiro o que iniciou a luta. Acudiram várias pessoas que apartaram os contendores. Da refrega saiu ferido o segundo, com uns ferimentos no olho esquerdo feitos com o manípulo do guarda-sol (…) o qual recebeu tratamento na Farmácia Araújo, sendo os socorros médicos prestados pelo Dr. Sá… Consta-nos que o segundo vai mandar imprimir em folheto, para distribuir, uma carta que deu origem ao conflito.» // Por sua iniciativa, e como fora mobilizado, organizou-se em Melgaço, por volta de 1935 (Notícias de Melgaço n.º 276), uma agência da Liga dos Combatentes da Grande Guerra (1914-1918). // A 30/3/1937 foi operado no Hospital Militar da Estrela, em Lisboa (Notícias de Melgaço números 348 e 358). // Colaborou com certa regularidade no «Notícias de Melgaço». // Faleceu no lugar da Carreira, São Paio de Melgaço, a 10/9/1940. // A sua viúva finou-se em Penso a 18/7/1966. 

     /// (*) No Jornal de Melgaço n.º 1306, de 26/9/1920, diz-se que ele foi «promovido a tenente da Companhia de saúde…»; continuava a viver em Moçambique.

 

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

GENTES DE MELGAÇO
(microbiografias)
 
Por Joaquim A. Rocha


obra prima de Óscar Augusto Marinho

PEREIRA, Marcelino Ilídio. Filho de Bernardino Pereira e de Marcelina Rosa Esteves Cordeiro, residentes no lugar das Lages. Neto paterno de Francisco Pereira e de Maria Joana Gonçalves; neto materno de Francisco António Esteves Cordeiro e de Mariana Gonçalves, todos lavradores. Nasceu na freguesia de Penso a 14/2/1871 e foi batizado na igreja paroquial no dia seguinte. Padrinhos: os seus avós maternos, residentes no lugar de Casal Maninho. // Aos 15 anos de idade partiu para a capital do país, empregando-se no comércio. // Em 1912 assistiu em Lisboa, com seu irmão Firmino, às comemorações do 5 de Outubro (Correio de Melgaço n.º 23, de 10/11/1912). // Com o tempo, e depois de muito esforço, tornou-se um grande negociante de bacalhau, fazendo fortuna à custa do fiel amigo. A empresa “Marcelino Ilídio Pereira & Irmão” tinha os armazéns no Largo do Corpo Santo, Lisboa; forneciam de bacalhau e azeite os hospitais de Lisboa, Escola Académica, Casa Pia, entre outros (Correio de Melgaço n.º 47, de 27/4/1913). // Casou com Rosa da Ascenção Rodrigues Vilarinho. // Foi vítima de acidente a 2/7/1915, quando conferia uns fardos de bacalhau, depositados no barracão e desembarcados poucos dias antes no Cais da Areia; um lote de fardos desabou, apanhando-lhe a perna direita (Correio de Melgaço n.º 156). // Segundo o Jornal de Melgaço n.º 1264, de 28/9/1919, ele era dono de um interessante solar no lugar de Barro Grande, Penso. // No Notícias de Melgaço n.º 199, de 25/6/1933, pode ler-se: «na passada quarta-feira, de tarde, quando se estava realizando a feira, no Largo Hermenegildo Solheiro, encontraram-se Marcelino Ilídio Pereira, comerciante e rico proprietário de Penso, e o capitão Luís Augusto de Carvalho, os quais, depois de alta e acalorada discussão, passaram a vias de facto com os respectivos guarda-sóis, sendo o primeiro o que iniciou a luta. Acudiram várias pessoas que apartaram os contendores. Da refrega saiu ferido o segundo, com uns ferimentos no olho esquerdo feitos com o manípulo do guarda-sol (…) o qual recebeu tratamento na Farmácia Araújo, sendo os socorros médicos prestados pelo Dr. Sá… Consta-nos que o segundo vai mandar imprimir em folheto, para distribuir, uma carta que deu origem ao conflito.» // Faleceu em Penso, na sua quinta da Polita, a 18/8/1933 (ver Notícias de Melgaço n.º 206, de 27/8/1933, e Notícias de Melgaço n.º 209, de 24/9/1933). // Em 1935 a sua viúva ofereceu aos Bombeiros Voluntários de Melgaço um automóvel «Cóle». // Esta finou-se a 31/3/1940. // Pai de Maria da Purificação Vilarinho Pereira (nasceu a 2 de Fevereiro de 1---).       

domingo, 18 de setembro de 2016

SONETOS
 
Por Joaquim A. Rocha



pintura de Rana


CAMILO CASTELO BRANCO

(II - 136)

 

Como eu, nasceste de homem solteiro,

Tal Nero, tiveste uma mãe galdéria;

Gente que veio de longe, da Suméria,

Sem pátria, sem lei, e sem dinheiro.

 

Viveste um sonho, o derradeiro,

Entre a fartura e a vil miséria;

Dormiste com Júlia, com Pulquéria...

Geraste filhos como um rafeiro.
 

Olhos cegos, já cansado da vida,

Sentado na poltrona de dura sola,

Gizas a tua próxima partida…

 
Compras ao armeiro uma pistola...

E uma simples bala delambida

Com tudo acaba, tudo estiola!

 

 
18/9/2016

 

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

SONETOS
 
Por Joaquim A. Rocha


desenho de Bordalo

CAMILO CASTELO BRANCO

 
Tal como eu, nasceste de pai solteiro,

Como eu, sofreste as agruras da infância;

Sou-te igual, apesar da distância,

Levamos aos ombros o mundo inteiro.

 

Passamos frio, bolsos sem dinheiro,

À mor virtude demos relevância;

Fomos humildes, sem qualquer jactância,

Vivemos com verdade amor primeiro.

 

Tuas obras são hino às belas-letras,

Romances, poesia, mil novelas;

Tudo disseste com engenho e arte.

 

Teu génio alargou todas as gretas,

Viajaste por mares em lindas caravelas,

Teu nome é grande aqui, em toda a parte!

terça-feira, 13 de setembro de 2016

QUADRAS AO DEUS DARÁ
 
Por Joaquim A. Rocha

desenho de Luís Filipe G. Pinto Rodrigues


Trepei pela vida acima

Como um forte montanhês;

O alto deu-me vertigens…

Vim para baixo outra vez.

 
*

Subi os degraus da vida,

Um a um, nunca saltando;

Pois ela jamais nos foge,

Só a morte a vai ceifando.

*

Criança ainda sou,

Adulto não há ninguém;

A ama que me embalou

Era criança também.

domingo, 11 de setembro de 2016

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha





VISITAR MELGAÇO EM JUNHO

 

     Hoje em dia é facílimo ir de Lisboa a Melgaço. Entra-se na camioneta no Campo Pequeno e depois de cinco, seis horas de estrada está-se a beber uns copos com os familiares e amigos. O mês seis é ótimo para passear. Nem frio, nem calor excessivo. Julho e Agosto são meses quentes e incomodativos. Eu só vou à terra no verão por causa das festas da cultura e também para rever os companheiros de infância que vêm de França e de outros países. Como num verdadeiro ritual cíclico (graças ao meu irmão e minha cunhada, que nunca se cansam dessas coisas) no domingo, dia 12, percorremos quase todo o concelho. Eu conto como foi: saímos da vila logo a seguir ao almoço e fomos à Peneda (este povoado administrativamente pertence aos Arcos de Valdevez e pelo coração pertence a Melgaço). Ao longo do caminho paramos algumas vezes para admirar essas paisagens únicas. Haverá, no mundo inteiro, paisagem mais linda? Quando lá chegamos vimos pessoas a subir e a descer o íngreme escadório, talvez pagando velhas promessas, talvez por curiosidade. (quem estiver interessado em conhecer a história da Peneda leia o livro do padre Bernardo Pintor «Santuário da Senhora da Peneda – uma joia do Alto Minho»; nele se descreve o aparecimento da santa e a construção das capelas) (*). Aqueles enormes rochedos soltos, sobranceiros à igreja e ao hotel, assustam. Como é possível estarem ali, há séculos, sem cair? Voltamos para trás e rumamos a Castro Laboreiro. Nesse mesmo dia abria ao público uma loja de artesanato, com artefactos castrejos em miniatura: peças de vestuário (mantela, colete, peúgas, polainos de burel branco, mandil), tamancos (alabardeiros), masseiras, arcaz (caixas para guardar roupas e centeio), camboeira (onde se colocam as broas de pão), mochos (escabelos, ou escanos), etc., e também presunto e fumeiro de Castro Laboreiro, além do famoso pão de Castro, a mil escudos cada quilo! Cada broa pesava dois quilos, portanto dois mil escudos! O dono da loja (natural de Castro Laboreiro mas construtor civil em Viana do Castelo) explicou-nos que os preços altos se deviam sobretudo à escassez de mão-de-obra e à falta de centeio. Dirigimo-nos depois ao lugar de Alcobaça, Lamas de Mouro, e entramos numa estrada inacabada que vai dar a Fiães e Cristóval; esta via ladeia sempre o rio Trancoso e oferece-nos também uma das mais belas paisagens do Alto Minho. Do nosso lado esquerdo pastavam tranquilamente ovelhas, cabras, e algumas vacas. Fica-se boquiaberto pela maneira como estes animais se seguram, pois o rio fica lá em baixo, a uns bons 150 ou 200 metros. Trata-se de uma proeza, porque estamos perante um declive bastante acentuado. O gado olha-nos com espanto, pois não está habituado a ver automóveis por essas bandas.

     Nas esplanadas dos Cafés de São Gregório encontravam-se algumas pessoas cavaqueando e saboreando bebidas refrescantes. Com a saída da Guarda-Fiscal, e o fim do contrabando, este sítio, talvez o maior lugar da freguesia de Cristóval, pelo menos em número de habitantes, ressentiu-se deveras. Terão de inventar novas atividades, pois de outro modo ser-lhes-á muito difícil sobreviver.               

     Descemos a Cevide, lugarejo onde outrora existiu um quartel da Guarda-Fiscal e vinte a trinta fogos, mais ou menos cem habitantes (**), e extasiamo-nos com as suas belezas naturais. É precisamente aí que o rio Trancoso desagua no rio Minho e este penetra em território português. Cevide hoje praticamente não tem população! Cinco ou seis idosos teimam em acabar os seus dias neste cantinho parasidíaco, na terra onde nasceram e na qual viveram provavelmente os seus melhores anos. O seu rendimento já não advém da agricultura, nem do pequeno contrabando, como antigamente, mas sim de pensões de aposentação. Visitei o antigo moinho, silencioso e em ruínas. Ali perto, sobre o Trancoso, aparece a nossos olhos uma ponte metálica, ainda a cheirar a tinta. Não há muito tempo que eu apelava às autoridades camarárias para reconstruírem a velha ponte que tanta falta fazia a portugueses e galegos. Pois bem, ela aí está, mas pasmem: paga, segundo me disseram, pelos espanhois!

     Estava-se a fazer tarde, apesar dos dias de Junho não terem fim, e embora contrariados – Cevide não cansa – lá fomos a caminho da vila, pelos Casais, outra povoação maravilhosa, mesmo juntinho ao rio. Subimos à Senhora de Lurdes e depois foi sempre a andar… As muitas, e belas, fotografias que a gente foi tirando ao longo do trajeto apenas se poderão ver no mês de Agosto próximo, pois a minha máquina fotográfica ficou em Lisboa; é minha sina esquecer-me sempre de qualquer coisa!

     Percorri também, mas agora a pé, as ruas da sede do concelho e verifiquei, com pesar, que os erros cometidos, no que diz respeito a nomes, persistem. Que pena! Parece que ninguém se interessa. Aceitam as críticas mas não retificam. Assim, lá continua o Largo Policano em vez de Largo do Cine Pelicano, Rua Fonte da Vila em lugar de Rua da Fonte da Vila, etc. Por mais que procurasse, não consegui encontrar nenhuma rua com o nome do Dr. Augusto César Esteves, o que muito me espanta, visto que a sua obra historiográfica, acerca do nosso concelho, é importante; além disso, foi fundador dos Bombeiros Voluntários de Melgaço, Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço, Presidente da Câmara Municipal, e interveio, sempre que pôde fazê-lo, a favor do progresso da sua e nossa terra.

        Outro reparo: colocaram uma placa informativa com a seguinte indicação: -> IGREJA DA MATRIZ. Assim mesmo! Quanto eu sei, foi sempre conhecida por Igreja Matriz – vai mudar de nome?! Em termos filológicos é grave, pois ficamos com a ideia de que a igreja pertence à matriz, como a outra ali perto pertence à Misericórdia. Ora o que acontece, salvo melhor opinião, é que essa igreja é a matriz, isto é, a igreja principal. Se não sabem, porque não consultam o dicionário? Diz-nos este: «Matriz – diz-se da igreja que tem jurisdição em relação a outras igrejas ou a todas as capelas de uma dada circunscrição 
       

 

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1012, de 1 e 15/8/1994.

 

/// (*) Pode também ler (e ver) o meu artigo sobre o santuário da Peneda, inserto no livro «Lugares Sagrados de Portugal, I», páginas 198 a 203, inclusive, publicado em 2016 pelo Círculo de Leitores. 
 

/// (**) Em 2016 viviam ali meia dúzia de pessoas! Mário Olímpio Máximo Monteiro tenta tornar conhecido esse lugarzito, um mini paraíso terrestre, entalado entre dois rios, Trancoso e Minho, sobretudo através do marco número 1, onde começa Portugal, mas hoje os turistas preferem as cidades e as praias.

 

 

 

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
 
Por Augusto César Esteves



Linda Terra e Linda História
 

     É linda a terra e outra igual não há. Não receia confrontos; e de encómios dos nativos não precisa, porque as belezas de Melgaço não estão só na retina dos meus olhos, nem os muitos encantos naturais da terra meu coração os criou. E assim como é linda a terra, linda é também a sua história. Disse-mo primeiro o coração e ensinaram-mo depois os livros. // Durante a aprendizagem, por toda a parte pesquisei velhos papéis, muitos li e estudei com afinco e, entrementes, ó Melgaço! Ó minha terra amada! Para escrever com arte, verdade e elegância a história dos teus Homens todas as minhas tentativas falharam, porque acumulei, apenas, desejos sobre vontades – e isto é pouco, e isto é nada. Mas, embora sejam frágeis as armas vestidas agora por este novo e atrevido magriço teu, convém conhecer algo da antiguidade da terra onde se passam os factos historiados e, para tanto, façamos aqui uma pequena digressão em busca do Melgaço de antanho, segundo os ensinamentos dos livros e da poeira dos arquivos.

     Estão cheias de trevas as eras a visar e mesmo a própria Idade Média é campo ingrato para quantos procuram descobrir os seus arcanos; não raras vezes colhe aí um triste desengano quem julgar ter feito uma grande descoberta. A medo, pois, entra-se agora a rasgar clareiras e embora se reconheça estarem ainda por explorar a fundo bons filões, arquive-se no entanto aqui, de antigualhas, apenas o preciso para não quebrar a unidade deste estudo. Serão fantasias algumas passagens? Serão desacertos, outras? Talvez. Mas neste ramo do saber humano quem pode afirmar ter escrito obra acabada e perfeita? E se os livros dos mestres não são quais catecismos de religiões a ensinar sempre pelas mesmas palavras as mesmas verdades, quem pode acalentar a pretensão de expor os seus pontos de vista como dogmas de fé? Entretanto, e enquanto não chega a última variante das investigações históricas, como os nautas das caravelas da epopeia portuguesa foram disseminando pelos mundos desconhecidos os seus padrões, também eu, imitando-os, vou espalhar por estas páginas afora retalhos de lições e velhos documentos, não para que me tomem como descobridor, mas para os assinalar como marcos miliários a avultarem nas solidões do estudo, em épocas afastadas e menos canseirosas da minha vida.

     Sejam eles conhecidos, pois, de todos os entusiastas amigos de Melgaço e de modo especial sirvam para promover a cultura popular do meu concelho. Frisado isto, leia-se agora afoitamente o capítulo e com a mesma afoiteza responda-se no fim a estas cantantes palavras italianas: «se non é vero, é bene trovato?» // Não se conhece documento algum para assentar-se ter sido povoada por D. Afonso Henriques em 1170 a terra de Melgaço, como diz uma das fontes obrigatórias bebida por quantos escrevem sobre esta Vila, a “Corografia Portuguesa”, do padre António Carvalho da Costa; mas esta ideia deve ter a consistência da informação dada por Viterbo no “Elucidário” ao explicar o termo colecta, onde marca de 1171 o foral concedido por aquele rei. Mas se me repugna a asserção, embora fossem bens da Coroa transmitidos por D. Afonso VI, de Leão, ao conde D. Henrique, quando em 1097 separou da Galiza o Condado Portucalense, e os bens desta natureza serem muitos para todos andarem sempre bem trabalhados – o que implicaria vasta população (num tempo dela escasso) – reconheço e aceito, mesmo assim, o povoamento destes sítios próximos desde a mais alta antiguidade.

     Poucos são até hoje, é certo, os segredos arrancados ao seio da terra melgacense pelos arqueólogos; e sobre as eras recuadas não é grande também o feixe de informações dos avós dos nossos avós, recolhidas e conservadas pela linguagem do povo numa constante e religiosa tradição. No entanto, Abel Viana, um estudioso com invejável posição no mundo das letras, em Abril de 1930 descobriu nos terrenos do Peso actual, antiga Juradia de Várzea, uma estação paleolítica e nela recolheu três instrumentos chelenses, de talho grosseiríssimo, do mais rude por ele visto em quantas estações encontrou, sem então lhe passar pela mente ter deixado no mesmo local, enterrado numa das fímbrias do velho prazo da Quinta da Torre, um lindo exemplar de machado de bronze, de duplo anel e dupla caneladura, mas com enorme defeito – não ser meu. // José Fontes, um dos velhos pioneiros destes trabalhos, descreveu em Portugalia, como produto dum esconderijo margeano ou dum esconderijo de fundidor mercante, cinco machados, de duplo anel e dupla caneladura também, que um trabalhador, por acaso, encontrou em 1906 numa bouça da Carpinteira, S. Paio, quando arrancava um pinheiro.

     Nas ligeiras escavações da Cividade, vários objectos colheu o Sr. Dr. José Leite de Vasconcelos, levando-os para o Museu Etnológico de Belém com a pequena pedra do interessante tetráscele achada à flor do monte; conseguindo endereçar para lá os machados de bronze descritos em Portugalia e carrear para esse Museu até o chamado túmulo de D. Paterna, referido na “Corografia Portuguesa” do padre Carvalho… «aonde se vê sua figura de cónega obrada de meio relevo sobre o túmulo, e junto de si, na mesma sepultura, outro de homem armado com uma espada na mão para o pé» e o monumento apresentado pelo Dr. Luís Figueiredo da Guerra como um cipó luso-romano «tendo na parte superior um nicho com duas figuras, homem e mulher dando as mãos; no rectângulo inferior, e também abaixo dele, a inscrição, que diz: Fulana, de cem anos, e seu companheiro Valus (filho de Arda), de cinquenta anos, estão aqui sepultados; o companheiro Pento mandou fazer este monumento

     Esse arqueólogo, fundador do Museu, salvou-os da destruição, salvando-os da nossa tradicional incúria e supina ignorância. Mas se nos levou estas preciosidades, deixou-nos uma lição, incompreendida até hoje: explorar os nossos castros. E estes facilmente se encontrariam, seguindo a voz do povo. Sem necessidade de apontar para fora de um acanhado semi-círculo traçado à volta do seu eido, um castro, também, conservado na tradição como castelo da moirama, o melgacense ainda hoje apresenta sobranceiro à Vila o castro do planalto de Eiró e, mais para cima, o Crasto e a Eira, todos três na freguesia de Rouças. No antigo couto de Paderne outros dois aponto: Crastos e Cividade; este, um castro lusitano-romano, na opinião autorizada do sábio mestre, José Leite de Vasconcelos.

     Outros há, como os castelos de Sante, e até o Cartulário de Fiães conserva memória de um sepulcro megalítico ainda no tempo de D. Sancho II, a venda da «hereditatem meam quam habeo de casali de auteiro de mamoa et dedi eam ab forum Johanni ligoni», em local que não sei situar. / Mas tudo isso é pouco. Diminuto é ainda o espólio, e pequeno, por isso, o processo organizado. Através das suas folhas filtra-se já, contudo, uma réstea de luz e esta, coada por ensinanças dos mestres, é suficientemente clara para permitir a visão dum Melgaço habitado alguns séculos antes de Cristo nascer, mas habitado por um povo rude, aguerrido e de mui rudimentar cultura – os celtas.

     Aqueles instrumentos de pedra lascada não bastam, decerto, para atribuir ao homem paleolítico aquela estação de superfície e nunca ela, por isso, se poderá considerar como constituindo um castro pré-histórico. Mas, se algum dia da antiguidade ali se estabeleceu o homem – e o encontro do machado de bronze alguma significação tem – ao seu castro, tal qual como aos outros castros, deve atribuir-se a cronologia já avançada da era do ferro. // continua...

terça-feira, 6 de setembro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha


 
 escritores melgacenses 
 
 
LEMOS, Carlos Pereira (Dr.) Filho de Angelina Pereira de Lemos, doméstica, natural do lugar do Ribeiro, freguesia de Castro Laboreiro, concelho de Melgaço, domiciliada no lugar da Assadura, sede do concelho, e de (Domingos Almeida, natural do concelho do Sabugal, guarda-fiscal, em serviço no posto da freguesia de Paços, Melgaço). Neto materno de Braz Pereira de Lemos e de Maria José Gonçalves. Nasceu no lugar da Assadura, Vila, a 29/8/1926. // Após o nascimento a sua mãe levou-o para a freguesia de Cousso, onde moravam os avós maternos da criança. // Frequentou a escola primária em Cousso e fez o exame da terceira classe na escola de Cubalhão. // Com cerca de doze anos de idade trabalhou numa pequena loja aberta pelo padre José Marques a fim de fornecer produtos, sobretudo alimentares, aos trabalhadores da estrada que então se andava a construir para Castro Laboreiro. // Depois da quarta classe, concluída anos mais tarde, foi empregado comercial de Hilário Alves Gonçalves, também proprietário do Cine-Pelicano. // Saiu de Melgaço ainda novo, andou por Lisboa e outros sítios do país, estudou alguma coisa, aprendeu uma profissão, topógrafo, sobreviveu. Mais tarde partiu para o estrangeiro, onde tirou um curso superior, percorreu meio planeta, e acabou cônsul de Portugal em Melbourne, Austrália. // Casou com a Dr.ª Marion Molly Murray, de 23 anos de idade, natural de Durkan, África do Sul, filha de Archibald Murray e de Doris Norton, no concelho de Díli a 24/1/1961. // Neste ano de 2016 publicou um livro: «História de Uma Vida». A sua leitura surpreende-nos, não só pelas peripécias nele narradas, mas também pela determinação, a coragem, o espírito combativo deste senhor que soube vencer nos momentos mais difíceis do percurso. Poucas pessoas conseguiriam ultrapassar as imensas barreiras que vão surgindo no caminho da vida. Ele lutou e venceu. Agora, com noventa anos de idade, quer dar a conhecer ao mundo a sua peregrinação. Eu fiquei fascinado com a leitura do seu livro. Parte do texto leva-nos a pensar que pode existir ali alguma ficção, mas não creio: foi tudo vivido, é tudo realidade. O que lhe aconteceu ao longo de décadas não é, quanto a mim, repetível; não se pode imitar aquilo que não é imitável. As suas relações com pessoas famosas e outras, o seu à-vontade em meios que não eram até então os seus, leva-nos a crer que o destino dá uma ajuda àqueles que não se deixam dormir à sombra da bananeira. As suas impressionantes aventuras vão certamente ser levadas um dia ao cinema. Aguardemos.
      // Nota: defende a tese de que a Austrália foi descoberta por um português, Cristóvão de Mendonça. // Tem uma rua com o seu nome em Warrnambool.  

domingo, 4 de setembro de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
 
Por Joaquim A. Rocha



desenho de Sílvia Neto (a confirmar)

... continuação.

- São águas passadas. Lembro-me que quando fugi do hospital escondi-me nos campos, apareci somente à noite, sempre tive receio da noite, sobretudo por causa dos espíritos dos mortos, a nossa mãe levava-me aos velórios, o defunto ali na sala, estendido no caixão, aquele cheiro a cadáver, aqueles panos brancos a cheirar a água da colónia barata nos olhos vítreos, que algumas pessoas tiravam para lhe ver a cara. Aquelas histórias de espíritos malignos que se contavam durante aquelas horas intermináveis: «não se deve andar pelo meio da rua depois da meia-noite, é a partir dessa hora que passam os funerais, os mortos afastam violentamente os vivos…»; eu a querer dormir mas não tendo um local para o fazer, tão pequenino e naquelas andanças, a mamã oferecia-se sempre para lavar os corpos dos que tinham falecido, não sei se era para os familiares ficarem agradecidos ou se ela era mesmo assim, sempre pronta a ajudar os outros, ou porque gostava daquilo, é difícil saber ao certo, isso está no íntimo da pessoa, os outros não sabem, nem mesmo os filhos, o mais provável era ela ajudar desinteressadamente, eu não gostava dos velórios, mas não podia ficar em casa sozinho, não suportava a solidão, preferia ir com ela, se calhar nem sequer teria alternativa, andava todo borrado de medo, já via fantasmas em todo o lado, tinha horror da escuridão, ficava triste, arrepiado, completamente aterrorizado. No velório do tio Catão foi uma comédia: o morto na urna e por baixo, na corte, o porco a grunhir, até parece que estava a lamentar-se pela morte do dono, toda a gente riu, pudera, já estavam cheios de café e bagaço, por volta das cinco íamos ao forno comprar pequenos pães, chamados petins, ou moletes, quentinhos, para barrar com manteiga, até anedotas se contavam junto ao defunto! Noutro velório, o do tio Fabião, entrou o neto, uma criança de quatro anos de idade, e perguntou: «o que é que o meu avô está a fazer ali deitado no caixote?» Calculas a risada que foi! A mamã ia para as aldeias, aparecia altas horas, eu assobiava para enganar o espantalho do medo, no inverno era pior, os dias são curtos, há pouco sol, a noite cola-se ao dia, quase que nem se dá por nada, é tudo escuro, a nossa alma é escura, cinzenta, o receio oprime e invade o nosso coração, ainda hoje detesto a noite.

- A mamã quis levar-te outra vez para o hospital…

- Eu disse-lhe então que preferia matar-me, preferia desaparecer para sempre, que me importava? Que me batesse, que me arrastasse pelas ruas, eu fugiria sempre, iria para o monte, para junto dos lobos, das feras, não queria estar na «cadeia», com aquela gente esquisita, a comer somente caldos de galinha, a cheirar permanente aqueles químicos, a apanhar todos os dias aquelas injeções assassinas.

- Ficaste em casa, foste melhorando pouco a pouco.

- Naquelas idades ou se melhora ou se morre; é verdade que nunca fiquei completamente bom, tive sempre problemas na barriga, de vez em quando bichas pelo rabo, até pela boca, mas as coisas evoluíram favoravelmente; graças a Deus, e talvez àquele chã de ervas amargas, que todos os dias tomava, comecei a comer melhor, a engordar um nadinha. Lembro-me que até alfarrobas comi! Tinham vindo do Algarve para alimentar os cavalos dos guardas-fiscais; apanhei-os de costas, saltei para dentro da camioneta e tirei um punhado cheio – que grande barrigada! E eram doces como o mel.

- Podias ter rebentado, dizem que a alfarroba é muito indigesta. Depois a escola…

- Entrei para a primeira classe aos sete anos, era tão pequenino, tão raquítico, um fuinha; o professor nem queria acreditar que eu tivesse aquela idade, parecia um anão, magrinho, lanudo, descalço, que calçado só aos treze ou catorze anos é que tive umas sandálias que a mulher de um carabineiro me deu, estavam-me grandes, mas era melhor do que nada, pelo menos não trazia os pés no chão, que olha: os meus pés já pareciam de sola, eram mais duros do que as pedras, tu também passaste por isso, sabes do que estou a falar, mas olha que mesmo com fome e sem agasalho era dos melhores alunos, o professor Romano gostava muito de mim, chamava-me o Candinho, tinha uma grande simpatia por mim, ai não!... Que eu levava a escola a sério, sabia a tabuada de cor, não era como alguns, desertavam, não gostavam das aulas, depois o professor batia-lhes, os pais iam reclamar, acusavam, diziam que os filhos tinham as costas todas doridas das canadas que o professor lhes dava, daquela cana-da-índia sempre encostada ao quadro-negro, até parecia que nos olhava com ar zombeiro! Mas eles não estudavam, os mandriões, só andavam na escola porque eram obrigados, nunca estavam atentos ao que o mestre ensinava, depois não sabiam nada, nem a tabuada dos dois! Um chegou a ir à cama por causa das canadas e reguadas que apanhou, coitadito, mas o professor fazia aquilo para bem deles, pensava que batendo-lhes eles se dedicariam mais aos estudos, mas não resultava, só alguns, poucos, é que começaram a portar-se melhor, com receio de apanharem!                              

- Tu ainda chegaste a estudar mais alguma coisita…

- Tinha eu dezassete anos, apareceu aqui na Vila curso designado “Curso Elementar de Aprendizagem Agrícola”, teria a duração de quatro anos, mas só fiz os dois primeiros, era necessário haver um determinado número de alunos, todos do sexo masculino, as raparigas não eram aceites, foi pena, porque os rapazes não gostavam de estudar, preferiam o trabalho pesado da lavoura ou da construção civil, assim só davam o corpo ao manifesto, não esforçavam o cérebro, e por essa razão acabou por falta de estudantes, ao cabo de dois anos éramos somente três, eu ainda cheguei a ir buscá-los a casa, mas eles, calaceiros, arranjavam quase sempre uma desculpa infantil para não irem. O professor era o senhor Salomão, boa pessoa, viria a morrer atropelado na cidade por um automóvel anos depois, gostava muito de dar as aulas, aprendia-se bastante, eram matérias interessantes: português, matemática, desenho profissional, ciências…; foi quando eu comecei a trabalhar por conta própria, o meu patrão tinha ido para França – não ganhou nada com isso, acabou por morrer estoirado, ele era trinca espinhas como eu, foi à procura dos francos, mas o que ele encontrou foi a maldita morte. Coitado, deixou dois filhos pequenos e a viúva, ele aqui até ganhava mais ou menos, mas viu os outros irem e não resistiu, a ganância, queria enriquecer, mas olha que eu nunca vi ninguém enriquecer com o trabalho, seja em França ou noutro país qualquer, só se for com negócios, e por vezes sujos.     

- Isso é verdade, eu também nunca vi ninguém ficar rico a trabalhar, claro que os emigrantes juntam algum dinheiro mas é à custa de muitas horas de trabalho, quase que não descansam, e cuidam eles próprios da alimentação e da roupa, além disso vivem em barracas de lata, nos chamados bidonvilles, porque se morassem numa casa verdadeira já não amealhavam tanto, os carros que trazem são alugados ou comprados em segunda ou terceira mão, porque os novos são muito caros, não são para a sua bolsa, os usados é que são baratos, ouvi dizer que os franceses mudam de carro como quem muda de camisa, ganham bem, podem comprar bons carros, os portugueses comparados com eles são uns pelintras, uns pobretanas. 

- Quando apareceu a televisão já tu estavas em Lisboa quase há três anos. Nem fazes ideia o que foi por aqui: as mulheres e os homens, velhos e novos, acorriam ao único Café com aparelho de TV; o dono não tinha cadeiras e espaço para todos, alguns, muitos, ficavam em pé, chegava a haver zaragatas; era obrigatório consumir, pelo menos um café ou um leite com chocolate. Nos primeiros tempos era uma borga, interrompiam constantemente os programas, havia um interlúdio, um gato de um lado para o outro, as pessoas desesperavam, a tia Ernestina dizia alto e bom som que preferia a rádio novela, pelo menos não havia interrupções nem gatos; é verdade que ela deixava passar em claro o facto de se ouvir mal a rádio, era só ruídos, pois a corrente elétrica espanhola não era suficientemente potente para os aparelhos funcionarem bem.

- Em Lisboa também foi uma paródia, um pandemónio, todos os Cafés rivalizavam entre si, compraram aparelhos enormes, pareciam caixas, queriam atrair mais clientela, as ruas a certas horas da noite permaneciam desérticas, toda a gente ficava horas especada frente ao televisor. Um grande acontecimento, um fenómeno!     

- Ainda me lembro dos primeiros programas, com o Artur Agostinho, o Camilo de Oliveira, etc.; muito nos ríamos com aquelas palhaçadas! Passados que foram os meses iniciais, voltou tudo à normalidade. Além dos Cafés as pessoas começaram também a adquirir televisores, o espantoso evento vulgarizou-se.

- Quem deve ter perdido clientes foram os donos dos cinemas e outras casas de espetáculo.

- Sem dúvida. Aquelas casas cheias: quintas à noite, sábados e domingos, tarde e noite, deixaram de se verificar. O dono do Cine-Pelicano já dizia que por aquele andar mais tarde ou mais cedo teria de encerrar as portas, os alugueres dos filmes eram elevados, tinha de pagar aos guardas-republicanos e aos bombeiros, consumia muita eletricidade, havia que pagar aos empregados, a receita já não cobria a despesa.

- Tantos filmes lindos, eu vi naquela Sala!

- Lembras-te dos filmes de Charlot, do Cantinflas, do Bucha e Estica, do Fernandel, do Totó? E o Costinha, Vasco Santana, o extraordinário António Silva?! Fizeram-me rir até às lágrimas.

- Eu gostava mais dos filmes de cow-boys e peles vermelhas, do Búfalo Bill, dos Três Mosqueteiros, e também dos policiais.

- Também apreciava esses, mas os meus preferidos eram os filmes bíblicos. Por exemplo «Moisés», «Dez Mandamentos», «Ben-Hur», etc. Um filme que nunca esqueci, e não me importava de ver outra vez, foi «A mulher que viveu duas vezes»! Grande filme. «A Senhora de Fátima e os Três Pastorinhos» teve aqui muito êxito; muitas pessoas saíram do cinema a chorar, de tão comovidas.    

- A mim vinham-me as lágrimas aos olhos com os filmes de Joselito e de Marisol, que comoventes, e que vozes, pareciam rouxinóis a cantar! Também gostava de «Robin dos Bosques». O Errol Flynn fazia um papel extraordinário em «O Gavião dos Mares». O «Corcunda de Lagardère» encheu-me as medidas. Tantos! 

- Por causa dos filmes de espadachins perdeu um olho o “Vesgo”.

- É verdade. Brincávamos com espadas feitas de madeira e o “Zé Pirete” furou-lhe um olho. 

- Podia ter havido mais incidentes. Lembras-te quando andávamos a atirar setas uns aos outros?

- Se lembro! Uma altura o “Nesgas” fez um buraco na perna do “Pinchas” – o rapaz gritava como um doido.

- Velhos tempos! Apesar da fome que rapámos, do frio, de toda aquela miséria, mesmo assim sinto saudades desses anos, desses incríveis momentos que jamais voltarão, do meu pião, do meu arco, do meu carro de madeira, de todos aqueles brinquedos que eu tive.  

- A tua vida quase dava um romance!

- Dava, dava; mas logo nas primeiras páginas os leitores desistiriam de o ler – quem gosta de chorar?!  // continua...