ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
ARROZ DE PARDAIS
Vila de Melgaço.
Corria o mês de Setembro de 1954. As aulas na escola primária ainda não se tinham
iniciado. Já se começava a notar o tempo mais fresco e as nuvens cinzentas
anunciavam as primeiras chuvas de um outono que se aproximava a passos de
gigante. O Lingrinhas, rapaz moreno e seco de carnes, de fisga sempre pronta a
disparar, rondava a passarada. No dia seguinte à feira o chão da avenida das
tílias ficava cheio de detritos que as aves, sobretudo os pardais,
meticulosamente remexiam, a fim de encontrarem algum alimento. Por debaixo
daquele castanheiro secular, de castanhas miúdas, com raízes encostadas à
muralha medieval, as aves pululavam: lavandiscas, pombas, melros e numerosos
pardais.
O Lingrinhas, na
época das castanhas, gastava as suas pedras a atirar ouriços abaixo. A
proprietária surgia, furiosa: - «Patifes,
malandros, o castanheiro tem dono!» O moço, com meia dúzia de castanhas na
mão (os bolsos estavam quase sempre rotos devido às pedras que lá metia), fugia
a bom fugir. Como corria que nem uma lebre, não havia perigo. As castanhas
que ele mais adorava eram as do outro castanheiro, um bocadinho mais acima. Que
pena estar tão próximo das casas. Esse sim: dava umas castanhas grandes e
bonitas! Porém aí as coisas fiavam mais fino. As pedras iam bater no telhado,
nos vidros das janelas, ou nas garrafas dos pirolitos perfiladas no terraço à
espera de serem cheias. Apesar das dificuldades os rapazes espreitavam a
ocasião e zás! – uma fisgada, dois ouriços em terra, castanhas na mão e «ai pés para que vos quero!» Os dois
filhos do proprietário, João e Sílvio, dono também da fábrica de refrigerantes,
apareciam aparentemente zangados: - «Escusam
de fugir que nós sabemos quem vocês são; não perdem pela demora.» O
Lingrinhas, ao ouvir isto, ficava aterrorizado. Do mais novo não tinha medo,
era um paz de alma, não fazia mal a uma mosca; mas o mais velho, esse era
temido. Alto, forte, com uma voz de trovão, assustava a valer. O castigo que
ele aplicava mostrava-se exemplar: tinham de ajudá-lo a carregar e a
descarregar a camioneta. No final dava, aos rapazes, gasosas e esferas de
vidro, os conhecidos berlindes. Estavam feitas as pazes. O Lingrinhas ficava
com as mãos e os braços doridos, mas feliz por ter feito qualquer coisa de útil.
Nesse domingo de
Setembro o Lingrinhas não levou a fisga. Queria apanhar pardais, muitos
pardais, com ratoeiras para ratos. Que trabalho para as conseguir! Não é que
fossem caras, isso não! O problema consistia em arranjar o dinheiro suficiente para
as comprar. O rapaz, com a sua imaginação prodigiosa, resolvera o assunto: nos
dias de feira, entre Junho e Agosto, ia buscar água à Fonte da Vila com uma
bilha, espremia para dentro da água um limão, duas pitadas de açúcar amarelo, e
pronto: o refresco estava completo! Cinco tostões cada copo. Quando o calor
apertava, a bilha esgotava depressa, de contrário, andava todo o dia para
esvaziar uma! Com o dinheiro ganho pôde comprar as ditas ratoeiras. Primeiro
experimentou junto das tílias – só apanhou dois! Resolveu então armá-las
debaixo do castanheiro de castanhas miúdas. Aí sim, apanhou mais nove!
Tinha ido para lá às seis da manhã; de noite sonhara com pardais e ratoeiras. No sonho aparecia a mãe, a quem ele pedia: - «Mãe: quero um arroz de pardais bem feito, como só tu sabes fazer; eu depeno-os.» - «Está bem, meu filho, está bem; mas repartes com o teu padrasto, ele gosta muito desses pitéus.» - «Fica descansada, dou-lhe três ou quatro, o resto fica para mim e para ti, vou-me empaturrar!»
Ainda não
acordara totalmente e já estava a vestir as calças remendadas, a colocar o
cinto de corda, a enfiar pelo magro corpo a velha camisola, que já tinha
pertencido a duas ou três pessoas, e a calçar as velhas sandálias oferecidas
por um carabineiro. Agarrou um bocado de broa, mais rija do que uma pedra, e
desapareceu velozmente pelas escadas de madeira, que rangeram dolorosamente à
sua passagem. A mãe apercebeu-se de tudo, mas via o filho tão eufórico que não
ousou dizer fosse o que fosse.
Eram nove e meia
quando voltou da caçada. Vinha radiante. Onze passarinhos. Que rica arrozada!
Solicitou à mãe que pusesse água ao lume. Impaciente, nem esperou que fervesse.
Depenou as aves, todas elas gordinhas, e pô-las em cima da pesada masseira. - «Aqui estão elas; podes cozinhar o arroz.»
A mãe, conivente, pediu-lhe: - «Vais a
casa da vizinha Isaulinda e compras alface, cebolas e vinho. Não te demores» - «Vou num pé e venho noutro.» - disse ele com entusiasmo.
Enquanto a
progenitora preparava o magnífico almoço, o Lingrinhas foi jogar a bola para a
avenida. A GNR não permitia, mas que diabo: a malta tinha de jogar em algum
lado! Até se esqueceu da arrozada! O jogo era importante, se era: Carvalhiças
contra a Vila. Nas Carvalhiças havia jogadores fora de série; do lado oposto, O
Lingrinhas, o Alemão, O Pirata, e outros, também não lhes ficavam atrás. Seria
um verdadeiro jogo de campeonato! A bola era, sem dúvida, o seu fraco: por ela
esquecia tudo!
Logo que termina
o “derby” corre para casa esbaforido: - «Então
o nosso arrozinho?» - pergunta com ansiedade. - «Só agora?!» - interroga-o a mãe, preocupada. - «O teu “tio” estava com uma fome de lobo e já
começou a comer; nem sei se sobrou alguma coisa; eu nem os provei, só comi arroz.»
O Lingrinhas destapou o tacho sofregamente e qual não foi o seu espanto ao
verificar que apenas um pardalinho tinha resistido aos dentes do bruto. Encarou-o
com ódio: - «Seu filho duma cabra! Seu
bruxo mau! Devia rebentar como um sapo! À minha custa não comerá mais pardais,
só se for veneno!» - e despejou sobre a mesa o que restava do manjar tão
apetecido.
Saiu porta fora,
chorando de raiva. Rogar-lhe-ia pragas até vê-lo caído na valeta, odiá-lo-ia
toda a vida, jamais lhe perdoaria.
O tempo passou. O
velho guloso morreu, a mãe do Lingrinhas também, mas ele, embora tenha
perdoado, não esqueceu o burlesco episódio. Afinal de contas, era somente um
arroz de pardais.
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1029, de 15/5/1995.
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